Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A saga dos viajantes

Há lugares no mundo em que o visitante chega com expectativas ou idéias sobre o que vai encontrar, mesmo quando nunca antes esteve no local. Paris é um desses lugares, mas o detonador do seu fascínio é mais sua história como produto da ação humana. A Amazônia é outro, mas sua marca é mais a do mito, a natureza ainda superando o homem como protagonista. A imagem da Amazônia sempre antecedeu o seu conhecimento. Freqüentemente é a imagem que prevalece e a região acaba sendo substituída naquilo que é, de fato, pelo que seu visitante espera que ela seja, por suas projeções. Daí a variedade extremada na sua definição, desde o celeiro do mundo até o inferno verde.

Como ainda é pouco conhecida, a Amazônia motiva preocupações e teorias sobre o significado marginal ou oculto do interesse do seu visitante. Sem saber com precisão o que ela contém, o brasileiro, seu proprietário putativo, está convencido de que ela é alvo de uma permanente e insaciável cobiça internacional. Um dos agentes ou vetores desse imperialismo imorredouro seriam os cientistas, hoje, como os viajantes, ontem. Apregoando causas humanitárias e armados da ética do saber, eles seriam os pontas-de-lança de apetites geopolíticos e caçadores dos segredos da natureza, hoje associados à biodiversidade amazônica, sem igual no planeta.

Mas dificilmente se chegará ao fim da leitura de Grandes Expedições à Amazônia Brasileira (1500-1930), o livro de João Meirelles Filho, a ser lançado oficialmente em Belém neste mês, com tal concepção. Mais do que um livro, trata-se de um álbum (com 242 páginas) primorosamente editado, com rica iconografia. Passará a ser fonte de referência e de consulta indispensável sobre a saga dos ‘viajantes expedicionários’ ou ‘viageiros’ ao longo de quase quatro séculos e meio de peregrinações pela Amazônia continental, um território que equivale a 5% de toda superfície do planeta e a metade da extensão da América do Sul.

O livro, porém, é muito mais do que uma súmula analítica de 567 viagens, realizadas no curso de 42 expedições, a princípio individuais, depois coletivas, algumas amadoras, a maioria empreendida em bases científicas, de um total de mais de mil que João Meirelles inventariou. Ele reúne informações e apreciações suficientes para estimular uma interpretação mais profunda sobre a contribuição desses homens curiosos ou representantes da ciência.

Apetite imperial

Minha opinião é de que o saldo é altamente positivo para a Amazônia. Parte considerável do saber consolidado sobre a região deve-se a pessoas que, mesmo nela não se tendo estabelecido definitivamente, ou até mesmo passando rapidamente por seu território, conseguiram analisá-la com criatividade e acuidade. Trouxeram a abordagem que lhes foi proporcionada pelos centros mais desenvolvidos, de onde vieram, aplicando-a numa região carente de auto-reflexão. E ainda conseguiram incorporar parte do saber formado endogenamente, pelos nativos, embora não na proporção possível por causa do seu etnocentrismo.

Não há o viajante, mas os viajantes. Sua variedade compreende observadores apenas curiosos, amadores, pessoas inescrupulosas e até espiões. Mas a maioria é de gente bem intencionada, capaz e disposta a enfrentar todos os desafios para aumentar seu conhecimento. Eles tentaram contribuir para um destino melhor para a Amazônia e, quase sempre, tiraram pouco proveito pessoal das suas excursões. Comportaram-se com critério e lealdade como regra.

La Condamine, por exemplo, o primeiro dos cientistas a singrar o território amazônico (40 anos antes do primeiro brasileiro, o baiano Alexandre Rodrigues Ferreira), um lamentável deveria ser título de um dos capítulos individualizados do livro, recolheu sementes nos lugares por onde passou, ‘sempre que me foi permitido’. Charles Wickmann despachou regularmente as sementes de seringueira, coletadas no Tapajós, onde morava. Não precisou contrabandeá-las para que fossem aclimatadas em Kews Garden, em Londres, e plantadas na Ásia em larga extensão, destruindo o domínio amazônico do mercado na segunda década do século passado. Mas se os brasileiros não estivessem tão desatentos para a necessidade de também fazer plantios da seringueira em outras áreas do país, e impedissem a saída das sementes (e num volume tão grande, como aconteceu), os países industrializados teriam recorrido à pirataria. A Amazônia, com a produção dos seringais nativos, jamais daria conta da demanda. Até hoje só atende 20% das necessidades do mercado interno.

A ladainha da sempiterna cobiça internacional tem sido usada mais para purgar os pecados dos próprios brasileiros do que como constatação comprovada dos apetites imperialistas internacionais. Um caso comprovado de ambigüidade do cientista-comerciante-espião, como o de Henry Coudreau, constitui realmente a exceção, que não pode ser devidamente apreciada no livro porque João Meirelles o excluiu da sua lista, para não encompridá-la tanto. Mas, nesse caso, o corte foi errado.

Experiência de valor

Coudreau teve suas complicações pessoais, atuando no contencioso do Brasil com a França sobre o território da Guiana, mas seus relatórios de viagem aos principais rios do Pará são documentos preciosos, úteis até hoje. Parte do mérito, talvez a maior, deve-se à sua mulher, Octavie, que escreveu esses documentos. Devia estar no livro.

Mais grave foi a posição do governo colonial português, que, no século XVIII, impediu a entrada de um dos maiores cientistas mundiais, o alemão Alexandre Von Humboldt, por considerá-lo espião. Humboldt teve que se contentar com a parte menor da Amazônia, a hispânica, mas foi o bastante para ter uma prolífica produção e cunhar um dos títulos mais conhecidos da Amazônia, de celeiro do mundo.

É claro que a Amazônia despertava apetites nos centros mais poderosos do mundo. Mas até que o uso industrial da borracha se expandisse, com a descoberta do processo de vulcanização, a visão predominante era a Amazônia como ‘a terra ignota’, comparável ao que a Antártida representa nos nossos dias. Todos os países com pretensões de domínio internacional se sentiam obrigados a despachar enviados para ver aquela imensa área desconhecida do globo, tentar identificar suas riquezas e indicar as formas de ter acesso a elas. Passada a régua e o compasso, a conclusão predominante foi a de que ainda não chegara o momento da exploração econômica, mais segura e rentável na Ásia e na África.

A Flora Brasiliensis, um monumento da botânica, só foi concluída 90 anos depois que Spix e Martius estiveram na Amazônia, 38 anos após a morte de Martius, o que mais durou da dupla e o principal autor da obra. Para que ela fosse concluída, em 1906, a Alemanha precisou contar com 65 botânicos. Tratava-se, inegavelmente, de uma iniciativa de valor universal, não um instrumento de pilhagem. O acervo da expedição do barão de Langsdorff só foi reencontrada em 1930, um século depois de ter sido angariada em viagens tormentosas e trágicas, no porão do Museu do Jardim Botânico da então Leningrado (São Petersbugo). Não serviu a nenhum projeto econômico do império russo.

Langsdorff, que foi cônsul no Rio de Janeiro, onde tinha uma fazenda, e falava o português, passou os últimos 22 anos de vida na insanidade, mas contou com uma generosa pensão do czar. Já o inglês Alfred Russel Wallace, naturalista dos mais notáveis de todos os tempos, morreu pobre, em 1913, aos 90 anos. Condição partilhada por seu amigo e companheiro de viagem, o simpático Henry Walter Bates, pobre ao morrer, aos 67 anos, em 1892. O destino final da maioria dos viajantes esteve bem longe de ser brilhante. Mas certamente eles atribuíram à sua experiência amazônica um valor excepcional, o mais importante de suas vidas, em numerosos casos. Gostariam que a região estivesse em melhores condições do que aquelas que observaram e até fizeram sugestões nesse sentido.

‘Norte verdadeiro’

O barão de Langsdorff observou ‘quão rico poderia ser o país e como era mal administrado’. Recursos não lhe faltavam para concretizar seus ideais de grandeza. A borracha, ele já previa nos anos 20 do século XIX, seria ‘fonte de grande riqueza futura’. Quanto ao guaraná, ‘um dia juntará uma beberagem fresca e aromática ao luxo dos botequins em cidades da Europa’.

O barão, cuja expedição merecia um épico, achava que a Europa devia mandar ‘uma pessoa dinâmica para viver entre eles [os brasileiros] e ensinar-lhes a plantar, a construir engenhos de cana-de-açucar ou monjolos, a aperfeiçoar seus utensílios de pesca, enfim, a familiarizá-los com o trabalho’.

Esse projeto não disfarça preconceitos em relação à atribuída indisposição do nativo para o trabalho e um excesso de confiança no efeito transformador da tecnologia, porém é muito mais amigável e compreensivo do que os em execução atualmente. Posição semelhante teve o americano Daniel Kidder: ‘Se apenas o povo se desse ao trabalho de colher aquilo que a natureza tão prodigamente lhe põe nas mãos, não poderia deixar de enriquecer’, Bates pensava numa escala ainda maior: ‘será somente sob o Equador que a raça perfeita do futuro poderá fruir completamente sua bela herança humana, a Terra’.

O que unia essas pessoas, de origens e propósitos tão distintos, não era apenas a curiosidade, o desejo de viajar e a disposição de se arriscar, mas o amor pela natureza, um componente dissociado dos desbravador mais constante dos nossos dias. Além de uma grande dose de generosidade, da qual se acha possuído o próprio autor do livro. O paulista João Meirelles Filho fez sua primeira expedição à Amazônia quando tinha 15 anos. Voltou outras vezes até decidir se estabelecer em Belém, onde criou uma entidade para apoiar os esforços dos nativos pelo trabalho, o progresso e a preservação da natureza, empenhando-se por tirá-los da condição de cidadãos de segunda classe.

O objetivo do Instituto Peabiru está presente numa das características do livro. Sua relação dos viajantes inclui não apenas os personagens principais: tenta localizar os que anonimamente tornaram possíveis ou contribuíram para os resultados das expedições, mas raramente foram citados ou valorizados. Os viajantes ‘não tratavam os habitantes – índios, caboclos, quilombolas e mesmo os migrantes europeus recentes – como pares, com direitos iguais, merecedores de respeito; ao contrário, querem-nos como cidadãos de segunda classe’.

João espera que seu livro possa auxiliar o nativo ‘a se libertar do imaginário eurocentrista da Amazônia, este no qual nos miramos há cinco séculos, crentes que é o norte verdadeiro’. Até imagina reeditar o antropofagismo dos modernistas para ‘devorar viajantes, diários, mapas, desenhos e fotografias, incorporando as coisas deglutidas a nosso tecido imaginário, uma nova mito-poética’. Assim nos libertaríamos dos viajantes incorporando-os ao nosso corpus para as novas conquistas do saber e da harmonia entre os homens e com a natureza. A tarefa é hercúlea, mas a Amazônia está precisando de uma boa utopia. As que lhe oferecem ou são ruins ou não são genuinamente amazônicas.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)