Na terça-feira (9/11), alguns jornais publicaram um anúncio com o título ‘Fato Relevante’ comunicando ‘à sociedade e aos poderes públicos’ a fundação da Abra – Associação Brasileira de Radiodifusores. Assinado pelo seu presidente João Carlos Saad – e pelas redes de televisão SBT, Record, RedeTV! e Bandeirantes –, o comunicado confirma a anunciada cisão entre a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) e as principais redes que disputam o mercado com a Rede Globo de Televisão.
A Abert foi fundada em 1962, sob a liderança dos Diários e Emissoras Associadas, representados pelo ex-deputado e ex-senador João Calmon, já falecido, no bojo da aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei n. 4.117 de 27/8/1962) e da derrubada, pelo Congresso Nacional, de todos os 52 vetos do então presidente João Goulart. Desde então, a Abert reinava absoluta como entidade representativa dos interesses da radiodifusão privada e comercial.
Mas muita coisa mudou no Brasil – e, sobretudo, na radiodifusão – desde 1962.
Ainda naquela década, em 1965, surgiu a TV Globo do Rio de Janeiro – que logo se transformou em Rede Globo e consolidou-se, ao longo do regime militar, como a principal rede de televisão brasileira. A Rede Tupi, dos Diários Associados, acabou sendo ‘repartida’ em duas outras redes, em 1980: a Manchete – que foi posteriormente substituída pela RedeTV! – e o SBT.
Duas razões
Apesar de alguns poucos períodos de declínio, a Rede Globo conseguiu, ao longo dos seus quase 40 anos, ocupar uma posição de liderança absoluta na televisão aberta. Principal esteio do maior grupo empresarial de mídia do país – as Organizações Globo –, a Rede Globo estabeleceu sua liderança não só em relação à audiência mas, principalmente, em relação à distribuição das verbas publicitárias de anunciantes privados e oficiais. Mais de 50%, tanto de uma quanto de outra, têm sido destinadas à Globo, já faz um bom tempo.
Isso se traduz em enorme poder não só empresarial como, acima de tudo, político. E esse poder tem sido exercido efetivamente em inúmeras situações da nossa história política, como é de conhecimento geral.
Diante de tamanha predominância, era previsível que algum tipo de conflito de interesses fosse se desenvolvendo entre a Globo e as demais empresas que disputam o mercado de rádio e televisão. E a Abert, que naturalmente havia se transformado em porta-voz dos interesses do grupo dominante, viria a ser o espaço onde a disputa se manifestaria de forma mais clara.
Os primeiros sinais de conflito de interesses surgiram com o afastamento, primeiro da Record (1999), e logo da Rede Bandeirantes (2001), da Abert. A Record chegou mesmo a criar uma entidade de representação – a Abratel (Associação Brasileira de Radiodifusão e Telecomunicações), que ainda existe e funciona.
No início de 2002, por ocasião da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que permitia a entrada de capital estrangeiro na radiodifusão, a Bandeirantes, a Record e o SBT publicaram um comunicado na imprensa informando que a Abert não estava mais autorizada a representar os seus interesses.
Duas razões para o rompimento se tornaram públicas naquela época: uma referia-se ao fato de a Abert, do ponto de vista das redes que se desligavam, ter negociado desnecessariamente com os partidos de oposição o apoio da entidade à instalação do Conselho de Comunicação Social em troca da aprovação da PEC em regime de urgência; e, a outra, referia-se à posição da entidade de não entrar na Justiça contra o Regulamento dos Serviços de Multimídia (aprovado pela Anatel, em 2001) para favorecer os interesses econômicos das Organizações Globo no negócio das telecomunicações.
Tempo ao tempo
Na época, chegou a ser divulgada a constituição da UneTV – União de Redes e Emissoras de Televisão, com a participação da Record, da Bandeirantes e do SBT. Alguns meses depois, porém, circulou a informação de que a Record havia abandonado o grupo e voltado a se aliar à Rede Globo.
A discussão em torno do empréstimo do BNDES para os grupos privados de mídia, no entanto, voltou a reacender os conflitos. Em 2004, tanto a Record quanto a RedeTV! desligaram-se formalmente da Abert. As razões da discordância vieram à tona em maio passado, por ocasião de audiência pública na Comissão de Educação do Senado Federal, quando se discutiam os objetivos do empréstimo: saldar dívidas ou financiar investimentos produtivos? A primeira alternativa – que estaria sendo defendida pela Abert – favorecia claramente a Globo, grupo com maior endividamento.
Há ainda uma queixa antiga de que, dado o seu enorme poder político, o volume de verbas publicitárias oficiais destinadas à Globo não corresponderia à audiência da rede – prejudicando, portanto, suas concorrentes.
Sejam quais forem as razões, essa é a primeira vez na história da radiodifusão brasileira que os principais grupos empresariais do setor decidem atuar representados por entidades diferentes. Isso significaria o enfraquecimento da Abert ou o fato de que os radiodifusores não unirão suas forças para atingir objetivos comuns? Aparentemente não.
A recente derrubada, pelo Senado Federal, da Medida Provisória que alterava a forma pela qual os programas de TV são classificados (e que havia sido aprovada na Câmara dos Deputados), confirmou o enorme poder político dos empresários de radiodifusão. A MP avançava ao incluir a participação de entidades da sociedade civil no processo classificatório, mas foi considerada ‘uma forma de censura’ pelos radiodifusores.
De qualquer maneira, considerando que convivemos com a clara hegemonia de um único grupo que, além da televisão, atua em praticamente todas as outras áreas de mídia, o aparecimento da Abra poderia marcar o início de uma competição mais equilibrada no setor? Mais competição – mesmo que entre uns poucos grupos – poderia significar algum tipo de avanço a favor do interesse público?
Não há qualquer indicação nesse sentido, mas sempre se tem alguma esperança. Só o tempo dirá. É esperar e conferir.
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Professor aposentado da Universidade de Brasília, fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, autor de Mídia: teoria e política (Editora Fundação Perseu Abramo)