Muito se fala do enquadramento de Sérgio Moro (Podemos) como a 2ª via de Bolsonaro. Visto na cobertura da imprensa, essa é a abordagem corrente. Contudo, a candidatura do ex-juiz e ex-ministro da Justiça do atual governo levanta outro ponto relevante que toca a imagem do próprio Judiciário. Essa é uma questão a ser considerada porque Moro não é um outsider qualquer, representa o que durante muito tempo foi tido como o “governo dos juízes”. Trabalhos como o de Antoine Garapon falam exatamente dos “petit juges” no espaço político diante das fraturas da democracia.
A questão é importante, mas depois de toda a discussão sobre as arbitrariedades e uso da opinião pública pela Lava Jato não é propriamente uma novidade. Porém, é preciso ressaltar que, no início de janeiro, Moro trouxe um aspecto inusitado ao debate sobre a Justiça quando propôs uma nova Reforma do Judiciário. Falou em tornar a magistratura mais célere e mais barata, mas não se sabe detalhes de que tipo de reforma Moro proporia. Fato é que não deixa de ser uma ironia que seja ele a reabrir esse debate.
Ironia dupla porque Moro tanto tensionou o desenho institucional via opinião pública, como, segundo o próprio Supremo Tribunal Federal (STF), agiu de forma suspeita na condução processual. As observações aqui são colocadas de forma, digamos, elegante porque são ganchos para abordarmos questões mais institucionais.
Explica-se: ao se colocar com uma estranha versão heróica de juiz, Moro acabou furando uma espécie de “fila” institucional pela via da popularidade. Em 2017, com a morte do ministro Teori Zavascki, Moro encabeçou a lista da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) para uma vaga no STF. A lista não tem previsão legal e a vaga acabou indo para Alexandre de Moraes. Contudo, não se pode negar o valor da menção. Em 2021, com a declaração de suspeição por parte do Supremo, Moro ultrapassou outra fronteira institucional. Dito isso, vale uma pergunta para justificar o nariz de cera desse texto: qual é mesmo a Justiça que Moro quer reformar?
Reformar para prestar contas
Para responder a pergunta, uma volta no tempo é adequada. Em dezembro de 2004, foi promulgada a Emenda Constitucional 45, a chamada Reforma do Judiciário que, dentre outros pontos, criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com o apelo de melhorar a correção e a eficiência da magistratura. Um ano antes da promulgação da Emenda, em 2003, o então presidente Lula disse em um evento no Espírito Santo que era preciso abrir a “caixa preta” do Judiciário. A fala serviu como um jargão para o sentimento daquele tempo e, de fato, o Executivo foi o grande catalisador da Reforma, criando uma Secretaria Especial para impulsionar o projeto que tramitava desde 12 anos antes.
Resultado de um acordo entre Executivo, Legislativo e Judiciário, a Reforma foi sem dúvida um processo urdido pela cúpula dos Poderes, mas que tinha em sua justificativa uma demanda por accountability de uma magistratura que na época era uma ilustre desconhecida. Do ponto de vista midiático, a Reforma do Judiciário foi justamente um dos turning-points de agendamento da Justiça brasileira na mídia.
Em 2004, de junho a dezembro, meses finais de tramitação, os dados da Folha de São Paulo mostram que “entre os principais pontos da proposta, os mais citados foram os relativos ao controle externo do Judiciário. São ao todo 49 citações de temas correlatos (controle externo do Judiciário, Conselho Nacional de Justiça, Conselho da Magistratura), isso sem considerar as menções ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)” (Albuquerque, 2017, p. 62). A discussão naquele momento era como o Judiciário devia prestar contas à sociedade. É válida a discussão se o projeto de fato atendeu ou não ao que que estava pautado na agenda midiática e pública, mas os dados apontam o tema do controle externo como o mais agendado à época quando comparado a outros pertinentes à Reforma. Assim, voltamos à ironia que seja Moro a trazer o assunto aos holofotes.
Moro, a Reforma e o Twitter
Se em 2004 o levantamento da Folha apontava o controle externo como a principal pauta da Reforma, vale atualizar o olhar dessa vez focando nas redes. Em uma amostragem de menções no Twitter, entre os dias 17 e 24 de janeiro de 2022, o pesquisador Fernando Barbalho mapeou para essa análise do Observatório da Imprensa os seguintes dados: 44 menções diretas às expressões “Moro e Reforma do Judiciário” que, vistas no detalhe, nos mostram algumas questões interessantes.
A maioria dos tweets repercute o artigo sobre o tema intitulado “A reforma do Judiciário de Moro”, publicado na Folha de São Paulo no dia 20 de janeiro e assinado pelos ex-secretários da Reforma Sérgio Renault, Pierpaolo Cruz Bottini, Rogério Favreto, Marivaldo Pereira, Marcelo Vieira, Flávio Caetano e Marcelo Veiga. O artigo foi republicado pelo site Consultor Jurídico (Conjur) no dia seguinte e as menções à nova publicação também aparecem com ênfase.
Além da repercussão do artigo, inclusive em tweets de alguns dos autores, como o de Pierpaolo Cruz Bottini, temos como ponto de destaque exatamente uma ideia de controle em oposição às práticas de Moro no Judiciário. Aqui alguns exemplos: “Moro a favor da Reforma do Judiciário? Afinal de contas, ele recebeu auxílio moradia tendo casa”; “Moro propor uma Reforma do Judiciário tem a mesma credibilidade de Fernandinho Beira Mar propor uma Reforma do Sistema Penitenciário” e “Moro propor uma Reforma do Judiciário tem a mesma credibilidade de Lula propor o fim da corrupção”.
Houve também menções favoráveis a Moro, tais como “Sim, muito bem, o exemplo deve vir de cima. Nosso apoio incondicional ao Moro”, mas elas representaram um número ínfimo. Assim, vale salientar que, 18 anos depois da Reforma do Judiciário, foi justo a ideia de controle agendada à época que acabou se contrapondo ao ex-juiz que evocou o tema como proposta de campanha. Ironia me parece mesmo ser a palavra adequada.
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Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, também coordena o GT Comunicação e Justiça da Compolítica.
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Referências Bibliográficas:
ALBUQUERQUE, G. Mídia e Justiça no Brasil: o mapeamento das pautas históricas de uma nova relação. Mediapolis: Revista de Comunicação, Jornalismo e Espaço Público, Coimbra, n. 5, p. 51-73, 2017.