Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A liberdade e os direitos na internet

A polêmica dos direitos autorais na internet é uma questão complexa que abrange dois extremos. De um lado, a população digital, que cada vez mais compartilha arquivos sem o aval dos detentores das obras. Do outro, a indústria e alguns produtores que estão em crise diante desta nova realidade e combatem os downloads ilegais pela via criminal. Em entrevista ao Nós da Comunicação, Omar Kaminski, advogado especializado no tema e com dez anos de experiência atuando nas relações entre o Direito e as novas tecnologias, comentou as tentativas do Estado de regulamentar a internet no Brasil.


Para o autor do site Internet Legal, a formulação de novas leis é um desafio que deve ‘garantir novos direitos e não restringir novas liberdades’. Diante do embate entre a alta velocidade do ambiente digital e a morosidade do mundo jurídico, a solução está nas mãos dos artistas, que podem optar entre usar as ferramentas judiciais contra os próprios fãs ou distribuir o trabalho por caminhos alternativos.


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A cultura digital tem características que batem de frente com determinações das leis. Qual a diferença jurídica entre a compra de um CD pirata na rua e o download desse mesmo CD na internet?


Omar Kaminski – Não há diferença nenhuma. Ao rigor da lei, ambas ações seriam consideradas violações aos direitos autorais. Mas a chave da questão está na mão do autor ou do detentor dos direitos. Está havendo uma mudança de paradigma entre algumas bandas, como o caso da banda Calypso, que faz lançamentos com distribuição de forma alternativa ou independente, na qual o próprio artista faz a gestão. Alguns artistas perceberam que não adianta lutar contra os próprios fãs. Eles estão tentando um novo modelo, uma nova corrente para se adaptar a essa nova realidade, pois o direito ficou para trás. Está na própria Constituição Federal: cabe ao autor determinar como será a distribuição de sua obra. Uma vez que ele autorize ou apoie essa questão de licenciamento, não precisaríamos nem de uma lei nova.


Recentemente, Francis Gary, diretor da WIPO, que é a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, da ONU, criticou a forte repressão criminal sobre jovens que compartilham músicas ilegalmente. E citou o caso de um estudante americano obrigado pela justiça dos Estados Unidos a pagar U$ 675 mil por compartilhar 30 músicas na web, neste ano. Como advogado, qual a sua opinião em relação à repressão dessa prática? Ela deve ser reinterpretada para o ambiente digital?


O.K. – Começamos a defender um caso no Paraná, em 2003, que foi o primeiro preso no Brasil após a vigência da mudança da lei penal. Ou seja, mudou a lei abrangendo a internet e, na semana seguinte, o rapaz estava preso como bode expiatório. Ele tinha um clube de troca de músicas, no qual havia um custo de envio, pois não havia banda larga. Isso foi interpretado como intenção de lucro e ele acabou preso durante uma semana. Recentemente, saiu uma sentença de prescrição do caso dele, que não foi condenado, teve o caso arquivado. Mas esse foi um dos poucos casos brasileiros que tivemos conhecimento, diante da cruzada que ocorreu nos Estados Unidos, por intermédio da RIAAA (Recording Industry Association of America), que é o braço das associações das gravadoras.


Nossa legislação civil de direitos autorais é muito rígida, de 1998, um período pré-digital. Ela precisa sofrer ajustes, sob pena de esse descompasso ficar ainda maior. Baixar músicas na web continuar sendo crime não é viável do ponto de vista jurídico. Ninguém vai sair processando usuário comum ou vai fiscalizar o seu carro para saber se a cópia de mp3 que você está escutando é ilegal. O pano de fundo desta questão é o poder de monitoramento que estamos dando para o estado e algumas instituições: até que ponto eles podem avançar nesta ‘invasão de privacidade’. Essa é uma das questões cruciais que está sendo debatida no marco civil da web.


Uma questão muito complexa é a tentativa de regular a internet e, inclusive, você esteve presente no evento que inaugurou o marco regulatório da web no Brasil. É o início da tentativa de regulamentação no País?


O.K. – Houve um aumento do interesse por essas questões a partir do projeto de lei do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG). Isso é uma espécie de reação à tentativa de regularizar a internet pela via criminal, em cima de atitudes corriqueiras da web. As pessoas estão cada vez mais interessadas em discussões jurídicas, mesmo sem a capacidade de quem é da área. Com isso, notamos um conflito, pois a interpretação da lei não é tão fácil quanto parece. Temos uma pluralidade de discussões que muitas vezes não chegam a um consenso pela falta de um entendimento mais amplo do assunto. Não é uma crítica, é uma constatação. Uma das questões seria popularizar o acesso da população ao linguajar jurídico, porque a tendência é avolumar cada vez mais esta discussão.


Minha crítica é em relação à morosidade da parte regulamentatória do direito. A tecnologia está muito à frente. O jurídico é conservador por natureza. Ele espera que a questão se consolide, amadureça e se estabilize para depois virar lei. Mas há uma urgência, pois a internet nos permite criar condutas que ocorrem em tempo real. O direito não está acostumado com isso e há um descompasso nessa questão.


Existe algum receio dos ativistas da cultura digital de, durante este período de regulamentação da web, serem estabelecidas leis contrárias aos seus objetivos?


O.K. – Essa é de fato uma realidade nova. E me preocupa a nova legislação ser pior do que a encomenda, ou seja, o remédio acabar sendo pior do que a doença. Há um sentimento de urgência para mudar. Estão se testando vários limites da internet e esse ciberativismo é extremamente positivo. Se o homem construiu um sistema ele terá a capacidade de desmontar. O problema é demonizar e criminalizar qualquer atividade, pois você acaba engessando a internet e suas possibilidades. Esse é o perigo da legislação sobre a internet. As novas leis teriam que ser para garantir novos direitos e não restringir novas liberdades. Mas essa é uma situação muito complexa, pois a internet virou a questão dos direitos autorais, literalmente, de ponta a cabeça.


Como você avalia este embate entre a velocidade da tecnologia e a morosidade da justiça?


O.K. – O ambiente jurídico é considerado uma das áreas ou categorias profissionais mais conservadoras da sociedade. Isso tem suas vantagens, ou pelo menos demonstrava isso até o período pré-digital. A partir desta nova realidade, houve uma mudança na nossa necessidade de dialogar com outros especialistas como da área de sociologia, informática ou economia, pois precisamos trabalhar juntos nesta realidade. É muito difícil legislar sobre a web, pois nossos juízes, ministros tem um conhecimento de uma pessoa normal, distante do conhecimento de um profissional da informática. Precisamos ter paciência em relação a isso. Só teremos um salto quantitativo, jurídico, que mude o sistema, a partir do momento em que a geração Y ascenda ao poder. Para, então, chegarmos a uma realidade de discussão madura. Essa é a primeira fase da web no Brasil e ainda há muito receio com a tecnologia.


O acesso à banda larga é considerado um direito fundamental, um serviço público, no Brasil?


O.K. – A promulgação da Constituição é de 1988. Nesse ano, não tínhamos a internet, que já tem em torno de 15 anos no País. Existe um descompasso neste ponto, que eu chego a brincar com a construção de uma Ciberconstituição. Para considerar a banda larga como um serviço de utilidade pública o ideal seria alterar a Constituição. E se houvesse uma mudança, teríamos de mudar para algo mais amplo, pois é uma nova realidade. Hoje, a própria internet não é considerada no Brasil um veículo de utilidade pública. A interpretação dos direitos fundamentais apenas permite a liberdade de expressão e acesso, mas essa seria uma interpretação por analogia. E, por analogia, ela será sempre contestada podendo não ser considerada um direito básico.