O início da vacinação contra a Covid-19 no Brasil em 2021 nos trouxe, além da esperança, mais uma evidência sobre o comportamento e os princípios de uma parcela significativa da sociedade brasileira. Ao lado do grupo que acredita serem conspiratórias e falsas todas as imagens, fotografias, teorias e estudos que retratam o mundo em formato geodésico, ganhou expressão a categoria que rejeita a ciência por trás das vacinas.
Embora esse descrédito à ciência não seja algo novo em solo brasileiro [1], sua exposição recente do tema suscitou debates capazes de nos levarem a reflexões além da vacinação em si, notadamente sobre um dos pilares que sustentam tais negacionismos: a progressiva amnésia coletiva que se mostra crônica em nossa sociedade.
A fragilidade de nossa memória pode ser exemplificada a partir das próprias vacinas. Se no século XX os imunizantes ajudaram a combater surtos e epidemias de doenças como a poliomielite – um dos casos mais representativos da história da vacinação no mundo e principalmente no Brasil –, atualmente muitos de nós sequer sabemos quais são os sintomas da difteria, da rubéola ou da varíola. Ainda hoje os imunizantes ajudam a combater essas doenças e é bastante provável que se você é uma pessoa saudável, vivendo em um país cuja expectativa de vida é de 76,8 anos, só no seu primeiro ano de vida certamente tomou boa parte das 18 vacinas indicadas no Calendário Básico de Vacinação da Criança.
Uma vez que o objetivo das vacinas é alcançado com êxito, a razão aparente para sua existência deixa de existir aos nossos olhos. Nunca vimos casos de tétano, não sabemos como ocorre a infecção da meningite ou que afinal de contas significa coqueluche. As vacinas nos deram o luxo de vivermos sem preocupação e, sinceramente, até mesmo sem interesse por nos informarmos a respeito de males que, agora, nos parecem tão distantes. Pouco a pouco, por conta dos próprios imunizantes, nos esquecemos da importância da imunização e passamos a usar o tempo de vida e a saúde que as vacinas nos garantiram para conspirar contra elas.
Nazismo, liberdade de expressão e tolerância
A trajetória das vacinas ajuda a ilustrar o ponto central a respeito do qual seguiremos discutindo a partir de agora. Acompanhando a efusão desses movimentos negacionistas que mencionamos, cresceu 270% no Brasil, nos últimos anos, o número de grupos neonazistas. Iniciativas criminosas voltadas a recuperar as ideias hitleristas – tais como o totalitarismo, o fascismo, antissemitismo, ódio ao feminino, ao negro, a LGBTQIAP+ e a determinados grupos étnicos – neonazistas ganharam força e surfam nas ondas de um mar que parece não demonstrar resistência a essas ofensivas.
Mais recentemente, no entanto, a maré de aparente resiliência foi rompida com o caso do Youtuber Bruno Aiub, o Monark, ex-apresentador do Flow Podcast. Na edição de 7 de fevereiro do programa, Monark defendeu a criação de um partido nazista no Brasil e o “direito” de ser antissemita. Após a repercussão negativa dos comentários e do iminente cancelamento dos contratos publicitários do programa, Aiub foi desligado do Flow Podcast.
Até aqui, a descrição do episódio seria suficiente para discutir questões com as quais o jornalismo, entre idas e vidas, permanece se defrontando, como a responsabilidade (ou a falta dela) dos criadores de conteúdo digitais. Mas nos interessa particularmente o argumento usado por Monark para se defender das represálias: a liberdade de expressão [2]. A alegação foi a mesma empregada pelo ex-comentarista da Jovem Pan, Adrilles Jorge, demitido da Joven Pan News após fazer gesto “supostamente” nazista em um programa que debatia o caso Monark, no dia 9 de fevereiro.
Episódios como esse nos colocam diante do questionamento clichê: afinal, quais são os limites da liberdade de expressão? Em verdade, discutir esse conceito caro à democracia no contexto de falas e gestos de apologia ao nazismo diz muito sobre o quanto precisamos evoluir no conhecimento sobre liberdade de expressão.
A evidência de que estamos atrasados pode ser encontrada no debate envolvendo um conceito que sofre do mesmo problema que a liberdade de expressão. Em um suscinto artigo publicado em 2003, o psicanalista Raymundo de Lima recupera e discute o conceito e a prática da tolerância, “virtude necessária para elevar o ser humano à condição de civilidade”.
Doutor em Educação, Lima relembra a frase do escritor José Saramago, registrada em entrevista à Folha de S. Paulo, em 1995, para quem “a tolerância para no limiar do crime. Não se pode ser tolerante com o criminoso. Educa-se ou pune-se”. O psicanalista também relembra a provocação do escritor e pacifista israelense Amós Oz: “a tolerância deve se tornar intolerante para se proteger da intolerância?”.
De toda a revisão sobre o conceito de tolerância efetuada por Lima, talvez a do filósofo Karl Popper seja a mais contundente. Aliás, contundência é palavra-chave quando se trata dos limites da tolerância e da liberdade de expressão. Para o pensador austríaco, a tolerância, quando próspera, acaba por revelar uma contradição, o “paradoxo da intolerância”. Em resumo, o que o filósofo argumenta é que quando a tolerância é absoluta e irrestrita, mesmo os intolerantes têm a possibilidade de expressarem o que pensam e o que são. Quando isso ocorre, a consequência é a aniquilação da sociedade tolerante e dos próprios tolerantes.
Assim, tal qual a tolerância, a liberdade de expressão que permite discursos contrários a ela, inevitavelmente está caminhando em direção ao seu fim. Resta disso que as fronteiras da liberdade de expressão estão delimitadas, e quem não as vê é porque não a compreende ou atenta contra ela.
O jornalismo contra a amnésia coletiva
Se ainda não atingimos o grau de civilidade necessário para distinguirmos liberdade de expressão de apologia ao nazismo, significa que temos trabalho a fazer, coletivamente. Levando em conta que já se passaram 77 anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que as testemunhas daquele período estão em idade avançada, cada dia que passa torna nossa memória coletiva a única protagonista na manutenção da intransigência contra o neonazismo. Monark nasceu cinco anos depois do fim da ditadura militar e integra uma geração que nasceu e cresceu em um país democrático, no qual o direito de se expressar é garantido constitucionalmente.
Então, da mesma forma que as vacinas se tornaram vítimas delas próprias por termos esquecido de como é viver sem elas, a liberdade de expressão sofre do mesmo mal quando se deixa cair no paradoxo da tolerância de Popper. Não sabemos, ou esquecemos, como é viver sem liberdade de expressão e naturalizamos ouvir matutações favoráveis a ideias essencialmente antidemocráticas.
O tratamento para essa amnésia social passa por duas instituições básicas à civilização democrática. Uma delas, como não poderia ser diferente, é a educação. Formar cidadãos que cresçam sabendo o que verdadeiramente significa, como é viver sem e especialmente de que maneira se posicionar diante de afrontas à liberdade de expressão é um projeto de médio e longo e prazo.
No entanto, também precisamos de ações imediatas. Claro que os códigos, o Ministério Público, a Constituição e a Justiça como um todo são baluartes contra as afrontas à liberdade de expressão, mas essas instituições costumam ser acionadas somente quando a infração à democracia já ocorreu, estando mais próximas da categoria “pune-se” mencionada por Saramago. A conscientização da população que poderia vir do rigor das condenações, aparentemente não emerge, uma vez notado o aumento progressivo de neonazistas no Brasil.
Deste modo, conflui para o jornalismo a responsabilidade de demarcar o que é certo e o que errado, ao menos do ponto de vista da democracia. Dar espaço para falas antidemocráticas, reverberar depoimentos que ferem a liberdade de expressão como se fossem ideias políticas naturais ao ambiente republicano e temer a taxação de “suspeitos” atos nazistas é seguir na direção do paradoxo da tolerância. Em outras palavras, o jornalismo que não restringe a voz de quem fere a liberdade de expressão e que tolera os intolerantes em nome da imparcialidade, do doisladismo, da neutralidade, cava a sua própria cova.
Os tempos eleitorais que se avizinham são uma boa temporada para a instalação de práticas de maior maturidade democrática no jornalismo. É preciso mais protagonismo, coragem e zelo pela sociedade em que vivemos. Embora internamente discutamos efetivamente qual é o papel do jornalismo e como enfrentar todos os agentes de uma crise que balança este ofício, ao menos ainda temos alguns pilares e o convívio democrático é um deles.
Então, em meio à amnésia crônica que se alastra por várias instâncias, enquanto a educação faz sua parte na formação dos cidadãos, cabe ao jornalismo a tarefa de garantir forçosamente a sobrevivência e a permanência de uma memória coletiva que nos lembre como chegamos até aqui e o que passamos, enquanto humanidade, para vivermos do modo que vivemos.
Acima de qualquer justificativa que se ancore no pretensamente epopeico argumento de que a história mostrará quem estava do lado certo, é necessário que o jornalismo paute suas ações a partir do agora. Afinal de contas, a história está acontecendo, e antes de preocuparmo-nos em saber como ela irá nos classificar daqui a 5 ou 10 anos, devemos nos preocupar com nossas vidas hoje. Diante de ameaças desse nível, não deixa de ser uma questão de sobrevivência.
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Notas
[1] Realizada pelo Pew Research Center, pesquisa apontou que a população brasileira é a que – dentre os países analisados – demonstra ter a menor confiança nos cientistas. Disponível em: https://www.pewresearch.org/science/2020/09/29/science-and-scientists-held-in-high-esteem-across-global-publics/. Acesso em fevereiro de 2022.
[2] A relação de Monark com o conceito de liberdade de expressão é longa. Envolvido em outras polêmicas anteriormente, o YouTuber chegou a questionar, pelo Twitter, se ter uma opinião racista poderia ser considerado crime. De fato, em seu pronunciamento de desculpas após o programa em que fez apologia ao nazismo, ele não usou o argumento da liberdade de expressão, justificando que estava bêbado quando defendeu a criação do partido nazista no Brasil e a liberdade de ser antissemita. Dias depois, voltou a falar sobre liberdade de expressão, após o YouTube o proibir de criar um novo canal.
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João Victor Gobbi Cassol
Mestrando no PPGJOR/UFSC, pesquisador do objETHOS e do Grupo Biosofia (Pesquisas e Estudos em Filosofia) URI-FW.