Se a imprensa brasileira avançou muito nas últimas décadas, a de Brasília, capital federal e quarta maior cidade do país, parou no tempo. O caso envolvendo o governador José Roberto Arruda, tornado público pela Operação Caixa de Pandora, da Polícia Federal, é apenas o exemplo pronto e acabado do nível de compromisso ético do principal jornal local, o Correio Braziliense, e de seu (distante) concorrente Jornal de Brasília. A cobertura, nos dois dias seguintes à divulgação das acusações feitas pelo ex-secretário Durval Barbosa, fartamente documentadas com gravações de áudio e vídeo, traz saudades dos casos mais pitorescos – e absurdos – protagonizados por Assis Chateaubriand, o Chatô, fundador dos Diários Associados.
No sábado, um dia após o caso se tornar público, o Correio Braziliense saiu-se com a seguinte manchete: ‘GDF e distritais são alvo de investigação’. À parte a impossibilidade de o ‘governo do Distrito Federal’, por razões óbvias, ser alvo de uma investigação criminal, a ausência de menção a José Roberto Arruda, inclusive na submanchete (‘PF e Justiça apuram suposto esquema de propinas a parlamentares’), ignora qualquer critério jornalístico conhecido. A manchete do Jornal de Brasília, o presumido concorrente, foi ainda mais surreal: ‘Arruda exonera secretários’.
De olhos bem fechados
Apenas para efeito de contraste, confira as manchetes dos três jornais mais vendidos no país, no mesmo dia:
O Globo: ‘Governador do DEM é suspeito de pagar propina a deputados’
PF grava José Roberto Arruda negociando repasse de dinheiro com assessor
Folha de S.Paulo: Governador do DF é acusado de corrupção
Segundo a PF, secretário gravou pedido de distribuir R$ 400 mil a aliados; Arruda (DEM) nega acusação
O Estado de S. Paulo: Polícia flagra ‘mensalão do DEM’ no governo do DF
Suposto esquema teria até mesmo participação do governador Arruda
No domingo, o Jornal de Brasília, talvez convencido de que o envolvimento de Arruda no caso era indisfarçável, admitiu citá-lo em sua manchete: ‘DEM pressiona o governador’. No entanto, o Correio, líder absoluto do mercado brasiliense, não só manteve os olhos fechados, como pôs no alto da primeira página sua série especial sobre o crack. Abaixo da dobra, veio o tema secundário, e novamente por vias oblíquas: ‘OAB-DF pede explicações sobre denúncias’. O nome de Arruda, ou mesmo o cargo de governador, não apareceu nem no imenso texto abaixo do título: ‘Instituição determina abertura de processo para analisar suposto esquema de corrupção no GDF. Com vários distritais citados no inquérito, Câmara não chega a consenso. TV divulga vídeos gravados pelo ex-secretário Durval Barbosa, exonerado do cargo’.
Vice-governador, um ser diáfano
Em resumo, nas duas edições subseqüentes à divulgação do apurado na Operação Caixa de Pandora, o nome do governador José Roberto Arruda apareceu uma vez na primeira página do jornal mais vendido de Brasília. Uma.
Os grandes jornais do país, por razões insondáveis, mantiveram o interesse pelo caso no domingo [29/11].
O Globo (manchete): DEM admite que situação de Arruda é insustentável
Imagens mostram governador do DF recebendo dinheiro e negociando propina
Folha de S.Paulo (segunda manchete): Governador do DF aparece em vídeo recebendo dinheiro
O Estado de S. Paulo (segunda manchete): Em vídeo, Arruda recebe R$ 50 mil
Fita incrimina o governador do DF, suspeito de ser ‘chefe da quadrilha’ (segunda matéria)
Se o nome de Arruda mal apareceu nas primeiras páginas dos jornais de Brasília, o vice-governador, Paulo Octávio, tornou-se um ser diáfano – ninguém sabe, ninguém viu.
Ainda nos tempos de Chatô
Mas que interesses levariam Correio e Jornal de Brasília a proteger o governador e o vice-governador?
Ignore-se que os maiores anunciantes de ambos são o governo do Distrito Federal e o setor imobiliário. Ignore-se que Arruda e Paulo Octávio comandam os gastos do GDF com publicidade e que este último é dono da maior construtora da capital. Ignore-se que Paulo Octávio é sócio dos Diários Associados – donos do Correio – na TV Brasília. Ignore-se que Durval Barbosa denuncia, além das propinas e desvios, uma reunião ‘jornalística’ entre Arruda, José Celso Gontijo (dono de construtoras e sócio de Paulo Octávio) e Álvaro Teixeira da Costa (presidente do Correio). Ignore-se que, a se julgar por recente matéria da revista Época, o empresário Marcos Lombardi, dono do Jornal de Brasília desde 2007, mantém relações, por assim dizer, bastante próximas com Jose Humberto Pires de Araújo, secretário de governo de Arruda.
Ignore-se tudo isso, e mais um pouco, e não há por que achar que Correio Braziliense e Jornal de Brasília se empenharam em tentar fazer desaparecer do noticiário – também em seus sites Correioweb e Clicabrasilia – um escândalo envolvendo governador, vice-governador, secretários e deputados distritais, além de empresários do setor mais poderoso da capital.
A questão é: até quando o cidadão do Distrito Federal vai continuar ignorando que os esquemas de propina, os desvios de verba pública, os favorecimentos, as fraudes e os abusos dependem não só de políticos, servidores e empresários inescrupulosos, mas também da manutenção de uma imprensa que parece não ter avançado nada desde os tempos de Chatô, quase cem anos atrás?
Link da Época:
******
Jornalista, tradutor, servidor público federal, Brasília, DF