Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Diário do grande sertão-veredas

‘A velha do chapelão’ é a imagem com que os habitantes dos sertões do Nordeste nomeiam a morte nesse pedaço vasto e – ainda – desconhecido do Brasil. A nação do semi-árido, com seu secular drama da fome, sua paisagem estorricada e sua rica simbologia, vem ocupando senão glosas marginais da grande imprensa, sob um enfoque sempre cristalizado pelo preconceito e pelo desconhecimento, a ponto de a região ser referida como um grotão que se contrapõe ao eixo dito civilizado do Rio-São Paulo.

Mas a região é muito mais rica, e é preciso se aventurar pelas trilhas da sua vasta geografia para compreendê-la, para redimi-la dos clichês a que tem sido confinada. Esse desafio foi encarado em 2003 pelos repórteres Xico Sá, de 40 anos, e U. Dettmar, de 65. A dupla percorreu 60 mil quilômetros visitando o cinturão mais crítico da fome e travando contato com inúmeros personagens desse Brasil profundo.

O projeto resultou de um convite do Banco do Nordeste, instituição parceira do programa Fome Zero. A série de reportagens produzidas foi divulgada em diversos veículos da mídia. Uma edição desse material acaba de ser lançado em forma de livro, com histórias surpreendentes. A nova geografia da fome é uma homenagem ao sociólogo Josué de Castro, o primeiro estudioso a revelar de forma consistente a tragédia da fome no Nordeste do Brasil.

No trabalho, Xico foi reeducado pela dura geografia da região e sua lógica desafiante, pelo esfregar das retinas viciadas do repórter no chão áspero da realidade severina. ‘O grande ensinamento que eu tirei foi como relatar isso sem cair no preconceito’, ele conta nessa entrevista concedida em Aracaju, por onde passou para divulgar o livro. ‘A coisa mais fácil em que eu mesmo já tenho caído e muita gente cai é o conceito de civilização e barbárie’, diz.

Com uma quilometragem de 20 anos na profissão, Xico, que nasceu em Crato (CE), passou por diversos veículos da grande imprensa – Veja, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Diário Popular. Escreveu os livros Paixão roxa (Edições Pirata, 81), Modos de macho & modinhas de fêmea (Record, 2003) e A divina comédia da fama (Objetiva, 2004). Hoje atua como free-lancer, é colaborador da Bravo! e edita o sítio O Carapuceiro (www.carapuceiro.com.br). Na entrevista que se segue, Xico Sá fala dessa que foi a sua maior viagem.

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Há uma crítica generalizada de que repórter não deixa mais a redação. Como você se sentiu tendo a oportunidade de enfrentar a poeira da estrada?

Xico Sá – No momento em que o jornalismo brasileiro tem repórteres, da Folha, do Estadão, do Jornal do Brasil, do Globo, para ficar só nos maiores, que em muitos casos não vão nem à periferia para fazer matéria, é tudo por telefone, não se usa mais a prática de estar colado, fazer entrevista olho no olho, é que foi de grande importância ter essa chance de correr essa região, que é a região onde eu nasci, à qual tenho um apego, uma coisa afetiva muito forte. Eu vinha fazendo esporadicamente uma matéria ou outra para os veículos nos quais trabalhei, mas quando se faz uma matéria dessas o editor já tem quase o título: tudo muito dirigido, os mesmos preconceitos de sempre. E nesse trabalho, como eu podia ficar nas cidades, conversar com as pessoas e ali almoçar, dormir, eu não tinha o compromisso com um título bombástico, com o sensacionalismo do jornalismo que, por mais frio que seja, tem essa natureza: o jornalismo é sensacionalista. Então, por isso deu para fazer esse relato, desobrigado dessa ‘quentura’ dos jornais. Esse foi outro dado muito importante como repórter.

Você viu de perto o grande sertão-veredas, e no livro dialoga com autores que trataram do tema. Acredita que a nossa literatura retrata bem essa realidade?

X. S. – Sim. Usei vários autores como guias da viagem. Uma coisa sentimental minha, autores com os quais eu já tinha uma ligação muito forte, e, como eu gosto muito de literatura… Estar naqueles lugares que de alguma forma tinham ligação com Guimarães Rosa, no caso de Minas, ou no sertão do Rio Grande do Norte, nas pesquisas de Câmara Cascudo, ou em Alagoas – passei em Buíque, na fazenda em que Graciliano Ramos morou –, essas coisas dão até um arrepio para se fazer o trabalho com mais vontade. E eu lia muito esse tipo de obra, de acordo com a região em que eu estava, dependendo do lugar em que eu estava, para servir mesmo de guia durante a viagem. Como também na parte musical: se eu estava no sertão de Pernambuco, ouvia muito Luiz Gonzaga; na Paraíba, ouvia Jackson do Pandeiro, no carro mesmo, durante a viagem. Para mergulhar pra valer naquele mundo. Acho que eles deram conta. Uns mais poéticos, outros numa grande aventura de linguagem, como Guimarães Rosa, ou mais secos, como é a própria linguagem semi-árida do Graciliano Ramos. Acho que todos são uma referência eterna. O jornalismo brasileiro está tão burocratizado, a maioria dos chefes não lê um livro – a maioria, não são todos –, que acabam proibindo que os repórteres utilizem linguagem mais literária e tenham isso como guia. Se eu fosse fazer isso num jornal qualquer os caras iam dizer, ‘tá louco, tá citando esse autor o tempo inteiro’, quando eu acho enriquecedor. A grande falha do jornalismo hoje, acho que de formação mesmo, é esse desapego à literatura, é as escolas não terem essa preocupação, porque, seja para que tipo de texto for, que tipo de matéria, se o jornalista ler muito a literatura nacional fica bem mais equipado e com a sensibilidade mais apurada.

Como você vê essas possibilidades de o jornalismo poder se apropriar dos elementos da literatura?

X. S. – Na crise que os jornais vivem hoje seria até uma salvação, um bom caminho, uma saída apostar na volta a esse jornalismo, a julgar pela forma burocrática com que dirigem hoje as redações no Brasil, da gazeta de um interior de Pernambuco até a Folha de S. Paulo – o tal do objetivismo burro que se implantou, que em algum momento fez até algum sentido, porque havia muito nariz de cera, que não chegava à informação nunca. Mas eu acho que dá para conciliar informação, dar todas as respostas e ter um texto mais literário, de forma que o leitor não se sinta violentado por aquele texto duro. O texto que os manuais de redação contribuíram muito para empobrecer, dos anos 80 para cá, com o primeiro manual da Folha, e que depois os outros jornais também adotaram. Mas o leitor não é burro, ele quer ter a informação, mas ele quer ter textos interessantes e ter prazer de ler. Houve alguns momentos assim no Brasil. Por exemplo, o Jornal da Tarde do fim dos anos 60, com Fernando Morais, Valdir Sanches, uma série de pessoas que fez muita coisa interessante nessa área. Acho que hoje é uma salvação, por exemplo, do jornal de domingo, que é mais em tom de revista.

Como era a logística do seu trabalho com Dettmar? Que critérios vocês usaram para traçar o roteiro dessa nova geografia da fome?

X. S. – Graças ao Banco do Nordeste, que acolheu o projeto, a gente teve uma estrutura que não teria nunca em nenhum jornal, ninguém ia se dispor a isso. E ao mesmo tempo seria uma coisa muito barata para eles. A gente chegava a Juazeiro e Petrolina, lugares em que a gente parou muito, e dali partia para o Piauí, para o Ceará, para o sertão de Pernambuco, para a Bahia. Então, como o banco já tinha estrutura de carros, pegávamos o carro da própria agência e saíamos. Os jornais grandes fariam isso gastando quase nada. Acho que é burocratização mesmo. A gente chegava a Petrolina e ficava em hotel de R$ 15, R$ 20, no interior. Refeição a R$ 5, R$ 8. Então, não justifica que os grandes jornais deixem de viajar.

Mas eles mandam os caras para a Europa.

X. S. – Exatamente. Ou para Nova York. Qualquer coisinha nego cobre. O quintal dos jornais de Nova York é São Paulo. Você pega jornalista em bar arrotando conhecimento da cartografia de Nova York, mais do que conhecendo a própria São Paulo. O Nordeste nem se fala. Realmente não conhecem. Tanto que tratam como ‘grotões’, aquele tratamento preconceituoso. Tudo o que não é São Paulo e Rio é ‘grotões’. Se se analisar a forma como cobriram as eleições, em que houve essa reviravolta do PT ganhando em cidades menores ou em capitais do Nordeste, tudo virou grotão, o partido dos grotões, que é uma forma preconceituosa de dizer que tudo que não é São Paulo e Rio, tudo que não é aquela metrópole, é grotão.

Você deve ter coletado um número de histórias maior do que foi capaz de descrever. Que critérios usou para selecioná-las?

X. S. – Houve uma necessidade editorial meio dolorosa. Eu fui escrevendo, soltei o braço e, quando dei fé, eu tinha uns oito livros desse guardados no computador, no fim da viagem. À noite, já no hotel, eu começava a escrever a quente, ali mesmo, para não distanciar. Quando acabou, entreguei o texto à editora, tinha estourado uns sete livros. Tanto que algumas partes dão uma trepidada, o corte é muito brusco. Eu penso em fazer outra história, mais solta, e aí já por minha conta, mais literária, do mesmo material. E aí não vou ter compromisso com nada: se já dei conta da encomenda do banco, do projeto… Tenho o plano de pegar esse catatau e transformar em jornalismo literário mais radicalizado. O que tem de personagem guardado! É muita coisa. Eu não me sinto totalmente satisfeito por não ter soltado mais o braço mesmo.

Numa das reportagens você conta que levou um exemplar do Geografia da fome na sacola, e chegou a ler um trecho para um sertanejo. Esse trabalho foi sua maior inspiração?

X. S. – Quando saí era para fazer uma homenagem a ele mesmo. Era claramente isso. E era uma forma de resgatar a memória dele. A mesma coisa que fiz com Graciliano Ramos e outros autores, com Josué de Castro eu fiz o tempo inteiro. Eu achei legal fazer isso: ler para um cara que nunca tinha ouvido e o cara gostar, dialogar com aquela história.

Numa passagem do livro, você escreveu: ‘Eu cesso as perguntas, aquele abandono não cabe em nenhum gravador’. Foi muito difícil traduzir esse abandono?

X. S. – Como jornalista, eu já fiz muita matéria ruim, preconceituosa, como jornalista do Sul que vem aqui. É o olhar, por mais que se tente tirar o preconceito, tudo burocraticamente, o título pronto do editor, e o jornal terá aquela matéria sensacionalista, pois a natureza comercial do jornalismo é sensacionalista. Então, por conta disso, eu mesmo já fiz muita coisa que questiono hoje. É nessa hora em que se está diante do cara, o cara ferrado, e eu cavando, cutucando uma dor ali. Eu disse ‘chega’. Como repórter não preciso ser esse urubu. Não estou precisando dessas frases bombásticas. Foi uma hora em que, mais do que em minha profissão inteira, eu me vi questionado ali, como aquele urubu que fica cutucando a dor alheia até as últimas conseqüências. E como eu tinha a liberdade de parar, pensei, ‘não, não tem que continuar isso’.

Faço a você a pergunta que fez Josué de Castro num dos capítulos de A geografia da fome: quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome?

X. S. – Existe um certo cinismo da classe média para cima e um certo cinismo da suposta modernidade brasileira de ainda hoje não enfrentar esses temas. Houve uma grande discussão agora no começo do governo Lula se havia fome no Brasil. Discutir isso num país como esse já faz parte de uma conspiração para implantar o silêncio em torno do tema. E acho que esse é um silêncio preconceituoso que não é só em relação à questão ali, se o cara está passando fome ou não. É um preconceito de região. É o que o Euclides da Cunha mencionou, do grande conflito entre a Rua do Ouvidor e a Caatinga. A Rua do Ouvidor era o lugar na época, começo do século passado, em que ficavam os grandes jornais do Brasil. Então acho que essa síndrome da Rua do Ouvidor – que hoje mudou de lugar e há em vários lugares – versus a Caatinga continua, que é o preconceito de não ver essa parte do Brasil, de ver mais Nova York. E não é queixa de nordestino carente, não. Acho que é uma política que esses jornais têm, assim como se usa a expressão ‘grotões’ se referindo a tudo que não é Rio e São Paulo. É uma forma de ir segurando um preconceito que é secular.

Você acredita que o Fome Zero tem trazido o estímulo necessário a esse país esquecido?

X. S. – Em qualquer lugar se pode fazer uma grande matéria a favor e uma contra o Fome Zero. Escolha o lugar que escolher, de acordo com o interesse do jornal. Só em Guaribas a gente teve a noção do efeito, porque também era laboratório. Uma coisa boa do livro, embora o projeto tenha sido financiado pelo governo, pelo Banco do Nordeste, é que não era obrigatoriamente chapa-branca. Até porque o projeto estava no começo. Era também um acordo que eu tinha feito com Paulo Mota, o jornalista que coordena a assessoria do Banco do Nordeste, para ter essa liberdade, para não ser uma coisa chapa-branca em torno do Fome Zero. A única coisa do Fome Zero que o livro tem efetivamente é um roteiro, porque são as áreas mais carentes do semi-árido. Em alguns lugares, seja que nome tenha, quando chega qualquer farelo, qualquer dinheiro, qualquer coisa é um efeito muito importante, não importa em que rubrica chegue. Há uma coisa da parte da burguesia, dos patrões, que vi muito no norte de Minas. Por exemplo, chegava o Fome Zero e a dona de casa, que ganhava R$ 2 por dia, não vai mais se escravizar por R$ 2. Então ocorre esse discurso todo, que toma conta dos jornais pequenos, que são comandados pelos patrões, os donos dos cafezais, tudo p. com a chegada do projeto, porque eles passariam a ter que pagar R$ 5, R$ 6.

Inflacionou o lugar.

X. S. – Inflacionou. Claro que é assistencialista, não se discute isso. Mas os inimigos do programa se aproveitam da miséria total. A situação de fome não é só aquela de não se ter um pedaço de pão durante o dia para comer. A situação que a ONU, a FAO reconhecem é aquela de se acordar naquele dia, e naquele dia ter-se que ir buscar o que comer, gastar toda a economia, toda a força de trabalho, todo o suor para naquele dia conseguir alguma coisa. Isso é uma situação economicamente de fome.

Que aprendizado você extraiu dessa experiência?

X. S. – Acho que primeiro serviu para eu me questionar como jornalista, como repórter, para eu matar esse urubu da grande imprensa que existe dentro de quase todos nós. Durante a viagem eu li um livro da Susan Sontag chamado Diante da dor dos outros, que é sobre cobertura de guerra, mais para o lado da fotografia. O grande ensinamento que eu tirei foi como relatar isso sem cair no preconceito. A coisa mais fácil em que eu mesmo já tenho caído e muita gente cai é o conceito de civilização e barbárie. Tudo que a gente desconhece trata como barbárie. Eu saí muito mais enriquecido para fazer eventuais coberturas. Li muita coisa de antropologia para tentar ter essa alteridade diante do outro. O jornalismo é normalmente muito pobre em todos os sentidos. A nossa formação é muito pobre academicamente. E hoje em dia, como se lê cada vez menos… Nossa formação é muito pobre para lidar com esse tipo de coisa. Então esse livro serviu para isso, saí preparado para a próxima.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)