A América Latina, ou melhor, as Américas Latinas, tem sido espectadoras impotentes de uma crise com grandes repercussões internacionais. Para além da queda de braço travada pela Rússia com sua vizinha Ucrânia, os desafios são universais. Eles dizem respeito aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Dizem respeito ainda à América Latina, às Américas Latinas, bem como às outras regiões do mundo, que também são mais espectadoras do que atrizes neste conflito europeu.
A constatação apresentada a seguir fornece uma visão geral, necessariamente limitada, mas suficiente. Diante disso, a pergunta implícita que devemos fazer é sobre o que virá nos dias seguintes. A Rússia prevalecerá militarmente e derrotará o exército ucraniano em um futuro relativamente próximo. Mas esse sucesso previsível pode lhe garantir “a última cartada?” A América Latina e seus 19 países são uma das periferias de um mundo disputado pelos “peixes grandes” da vida internacional. Essa sujeição àqueles que “podem mais” não é nenhuma novidade. A breve irrupção diplomática latino-americana no cenário internacional, de 2000 a 2016, durou enquanto duraram os efeitos dos royalties arrecadados na exportação de produtos primários a preços muito altos. Desde então, a roda girou, e obrigou aos governos da América Latina o retorno à estaca zero. Eis então uma realidade estruturalmente dependente de potências de alto valor agregado nas esferas tecnológica, econômica, cultural, social e militar.
Diante do tsunami militar em curso desencadeado na Ucrânia pela Federação Russa, uma das cinco “potências” com assento no Conselho de Segurança da ONU e detentora de energia nuclear, do México à Argentina, com algumas nuances, a reação foi a mesma: como um gato, eriçar os pelos das costas e esperar passar a ameaça. Claro que há nuances, entre o apelo a frases feitas diplomáticas e distanciamentos entre um e outro. Posicionamentos incisivos a favor ou anti-russos, são quase inexistentes. Somente a Venezuela, em falência ideológica, econômica e social, sujeita a severas sanções norte-americanas, apoiou Moscou em 100%. “A República Bolivariana da Venezuela […] lamenta a violação dos Acordos de Minsk pela OTAN incentivada pelos Estados Unidos, […] gerando fortes ameaças para a Federação Russa”, afirmou em comunicado de 24 de fevereiro. O Brasil também se recusou a condenar a Rússia. No entanto, a coerência desse posicionamento é problemática. Ambas as posições são confusas e, às vezes, contraditórias no centro do aparato estatal. Os outros países, como aqueles sujeitos a sanções dos Estados Unidos, como Cuba, ou, na posição contrária, aqueles que são aliados inabaláveis, como a Colômbia, expressaram suas preferências com moderação.
Cuba expressou seu apoio à Rússia com reservas em relação à não ingerência, como ficou evidenciado pela declaração da Agência Cubana de Notícias de 26 de fevereiro: “Cuba é a favor de uma solução diplomática para a atual crise europeia”. A Colômbia, associada à OTAN, distanciou-se. Não somos, disseram suas autoridades, membros plenos e, portanto, vinculados a uma solidariedade automática. Claramente, o Ministério da Defesa colombiano declarou em 24 de fevereiro: “não participamos de operações militares, nem de envio de tropas”. Os demais países latino-americanos, todos, da Argentina ao México, lamentaram uma situação que pode complicar mais ainda suas dificuldades econômicas. A Argentina precisa urgentemente de financiamento. Brasil, Chile, México, Peru e Uruguai vivem um cotidiano determinado por suas exportações e pelo bom funcionamento dos mecanismos bancários internacionais. Jair Bolsonaro disse que os fertilizantes russos são importantes para os produtores agrícolas do Brasil. Andrés Manuel López Obrador, presidente mexicano, quis se mostrar tranquilo. Ele informou, em 24 de fevereiro, que o México “está se preparando para um aumento no preço do gás importado”.
Praticamente todos recordaram seu antigo e ainda atual compromisso com o respeito ao direito internacional e à solução pacífica de divergências. Alguns evitam nomear o agressor, outros, após alguns dias de reflexão, decidem empregar o nome da Rússia. Às vezes, como no México, isso é feito de modo cauteloso e parcial, tal como disse o presidente mexicano, Obrador, que expressou sua condenação à Rússia afirmando que isso não significava dizer “que vamos nos fechar” comercialmente, em particular em relação à Aeroflot.
Continente com passado colonizado, região sujeita à interferência de vários países europeus e dos Estados Unidos, a América Latina produziu, ao longo do século XX, teorias protetoras das soberanias. Assinaram todos os instrumentos e todas as construções intergovernamentais, baseadas no reconhecimento da igualdade de direitos entre as nações do mundo. A crise de hoje, a ingerência brutal de um Estado-membro da ONU no território de um vizinho também reconhecido pela sociedade internacional, constitui um inaceitável para os latino-americanos, atrelados à necessidade de legitimação do direito internacional. Este ato poderia constituir um precedente para reembaralhar as cartas. E por que não reenviar o subcontinente de volta aos anos “dollars and big stick” (dólares e grande porrete). Afinal, o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e provável candidato às próximas eleições presidenciais de seu país, não convidou seu país a “copiar a Rússia e a enviar uma força de paz ao sul dos Estados Unidos”?
Mas o mundo hoje não é mais o dos anos 1900, tampouco o dos anos 1970. A China desde então surgiu com um jogo tão completo quanto o dos Estados Unidos, diferentemente da Rússia, que tem poucos ativos em suas mãos. Moscou na verdade quebrou brutalmente as regras ao apoiar o Irredentismo. Moscou abriu assim a perspectiva de uma redistribuição de cartas perigosas, devido às poucas cartas de que a Rússia dispõe: recursos como gás, petróleo e armas nucleares. Nesse contexto, o acordo da Rússia firmado com a Bolívia em 22 de outubro de 2021, denunciando a interferência dos Estados Unidos, levanta questionamentos. Ele certamente foi prorrogado, em 22 de fevereiro de 2022, quando se deu o anúncio de projetos compartilhados relativos ao gás e ao petróleo. A Bolívia é também um Estado que reivindica território conquistado pelo Chile no final do século XIX. De novo, trata-se de uma situação que faz levantar questionamentos. A Bolívia apoiou o diálogo, como forma de respeitar o direito internacional, mas o fez sem nomear o agressor.
A China de 2022 é, como a Rússia, uma potência militar e nuclear. Mas ela é também uma potência comercial, econômica, financeira e tecnológica. Os Estados Unidos também são uma potência militar, comercial, econômica, financeira e tecnológica. Muito presentes na América Latina, possuem instrumentos de influência diversificados, permitindo-lhes atuar sem recorrer a seus militares. Moscou mandou os EUA de volta ao passado, à Guerra Fria, à Europa, enquanto a China manteve a cautela diplomática, ficando assim com as mãos livres, o que permite a Pequim segurar e movimentar os cordões da bolsa sob sua influência. As Rotas da Seda estão tecendo laços de dependência cada vez mais presentes na América Latina. Depois da Bolívia, Chile, Costa Rica, Cuba, Equador, Peru, República Dominicana, El Salvador, Uruguai e Venezuela, a Argentina acaba de se juntar a ela. A China é, portanto, hoje um pouco mais capaz, senão de dar “a última cartada”, pelo menos de colocar um número adicional de coringas em terras latino-americanas.
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Notas
Texto publicado originalmente em francês, em 4 de março de 2022, na seção ‘Nouveaux espaces latinos’, no site IRIS Institut de Relations Internacionales et Stratégiques, Paris/França, com o título original “Crise Russo-Ukrainienne et Amérique latine déconnectés, mais, à qui le dix de der?”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/104219 . Tradução de Jocenilson Ribeiro, revisão de Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LIRE (Laboratório de Estudos da Leitura) e LABOR (Laboratório de Estudos do Discurso) ambos com sede na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).