Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Legalização dos jogos de azar no Brasil reduziria a corrupção policial?

(Foto: AidanHowe/Pixabay)

Em caso de legalização dos jogos de azar, como o governo vai fiscalizar?

Depois de muito vaivém, a Câmara dos Deputados aprovou por 246 a 202 votos o projeto de lei que legaliza os jogos de azar no Brasil, entre eles bingos, cassinos e jogo do bicho. Foi o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que teve a iniciativa de colocar em votação o projeto que já tramitava na Casa havia 31 anos. Agora seguirá para o Senado, que não tem prazo para votar a matéria. Pelo fato de ser um assunto de grande interesse dos leitores, sempre que alguém tentou liberar o jogo no Brasil acabou sendo manchete de primeira página. E agora que a legalização começou a caminhar vejo uma oportunidade para nós repórteres mostrarmos aos nossos leitores o que acontece entre as quatro paredes dos jogos de azar no país. Porque o que acontece ali impacta de uma maneira direta e indireta a vida de todos os brasileiros, principalmente na segurança pública, já que a proteção aos operadores dessa atividade é a principal fonte de corrupção policial no Brasil. Vamos conversar sobre o assunto. Aos fatos.

Essa história é antiga. Começou em 1946, quando o então presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, assinou o Decreto-lei 9.215, proibindo os jogos de azar em território nacional. Claro, a proibição não funcionou. Seria o mesmo que decretar que as águas dos rios não poderiam mais correr para o mar. Não tenho os números exatos, até porque é uma atividade clandestina. Mas seguramente o montante de dinheiro envolvido nos jogos de azar no Brasil soma alguns bilhões de reais e é superior ao Produto Interno Bruto (PIB) de muitos países. Aposta-se em tudo que é ilegal: jogo do bicho, caça-níquel, cassinos (roletas e outros), brigas de animais (galos e cachorros), bingo, carteado etc. Como exagerou um delegado da Polícia Civil: “Apostam até em cuspe a distância”. Não é possível manter uma operação de tal envergadura na clandestinidade sem a cumplicidade de autoridades, especialmente policiais. Não estou falando de corrupção policial por ter lido algum relatório ou ouvido de uma fonte. No final de 1992, investiguei durante seis meses o jogo do bicho no Rio Grande do Sul. Em junho de 1993, publiquei uma série de reportagens chamada “O poder dos bicheiros gaúchos”. Nunca mais deixei o assunto de lado, ou como se diz no jargão das redações: “não larguei o osso”. A organização dos banqueiros do jogo do bicho no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, foi a primeira forma de crime organizado que operou no país. A estrutura que os bicheiros cariocas montaram viria a ser copiada por traficantes de drogas, contrabandistas de armas, policiais que atuam como milicianos nas favelas cariocas e até mesmo pelas duas maiores facções criminosas do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro.

Os banqueiros do bicho que migraram para os jogos eletrônicos e os cassinos clandestinos continuam tendo poder. Para se protegerem nas suas lutas por territórios usam os serviços de pistoleiros de aluguel, como foi o caso do bicheiro carioca Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, que contratou como seu guarda-costas e pistoleiro Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais, o BOPE do filme Tropa de Elite. Maninho foi assassinado em 28 de setembro de 2004. Nóbrega era miliciano e foi morto em um confronto com a polícia no interior da Bahia em fevereiro de 2020 – há matéria na internet. Nos dias atuais, quadrilhas de traficantes e pequenas e médias facções criminosas estão diversificando os seus negócios investindo em cassinos clandestinos. Onde não só ganham dinheiro com a jogatina, mas também com prostituição e bebidas contrabandeadas de países vizinhos. Lembro que em março de 2021, no auge da pandemia no Rio de Janeiro, o jogador Gabigol, do Flamengo, foi flagrado pelas autoridades policiais escondido debaixo de uma mesa em um cassino clandestino. As instalações do cassino eram de primeira qualidade.

Antes de seguir a conversa, vou fazer uma observação que considero importante. É irrelevante para o leitor o jornalista se posicionar contra ou a favor da liberação dos jogos de azar. Ninguém está nem aí para a nossa posição pessoal sobre o assunto. Tenho feito essa lembrança nas minhas palestras para os colegas pelas redações do interior do Brasil. O interesse do leitor é saber os motivos pelos quais esse assunto não vai para a frente. Tenho dito que é conversa fiada dos operadores dos jogos ilegais de que são a favor da legalização. Faço essa afirmação com base em conversas que tive e ainda tenho com pessoas que atuam nesse meio há bastante tempo. Na opinião deles, se legalizarem os jogos de azar eles perderão dinheiro, porque terão de pagar impostos e se submeter a uma série de regras. Perguntei a um deles se as propinas que ele paga para funcionar não são mais caras do que os impostos. Respondeu que não. Lembro que, em 1993, quando publiquei a reportagem “O poder dos bicheiros gaúchos”, conversei com João Carlos da Cunha Franco, o Jonca, na época uma figura de proa do jogo do bicho no Rio Grande do Sul. Ele fazia parte do Clube dos 13, associação de contraventores que dividiram Porto Alegre. Tinha os seus negócios ilegais e também os legais, casas de loterias. Falou comigo porque nunca escondeu de ninguém que era bicheiro. Foi morto com tiros na cabeça em uma avenida movimentada de Porto Alegre em maio do ano passado.

Apergunta que temos que fazer ao nosso leitor é a seguinte. Se legalizarem os jogos de azar, acaba a corrupção na polícia? Tenho as minhas dúvidas, porque mesmo com a legalização sempre haverá o jogo clandestino, que é o que dá dinheiro para o dono da banca. A corrupção policial pode ter sido organizada pelos bicheiros. Mas hoje ela tem outro perfil, que é o envolvimento dos agentes policiais com as milícias e outras formas de ganhar dinheiro ilegalmente. A origem da corrupção policial começa no baixo salário que obriga o agente a fazer bico para completar a sua renda. Claro que não é só isso. Mas também é isso.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, em São Paulo.