Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Debates sobre Direito à Comunicação: teia de discussões urgentes

(Foto: Pexels-pixabay)

O usuário acessa sua conta da rede social e, na mesma tela, sabe que o filho de seu parente acabou de nascer, que estourou uma guerra em outro continente, que o tênis da sua marca favorita está em promoção e que há um abaixo assinado a favor de um projeto de lei sobre tema que lhe é afeito. 

Essa mesma rede social retira do ar publicação do usuário que então a acusa de censura; outro usuário percebe que seus posts, sem qualquer motivo aparente, não têm mais o alcance de antigamente; ele publica, mas parece que ninguém vê, embora ele não saiba disso. 

Há algo em comum em todas essas situações: uma profunda confusão em público e privado. Nelas o indivíduo é cidadão e consumidor em um contexto que torna difícil dissociar um papel do outro. Ao mesmo tempo em que ele pode se atualizar sobre sua rede de relacionamento privados, ele também interage em uma esfera pública digital discutindo questões de sua cidade e governantes, contribuindo para a formação de uma opinião pública que, contudo, não pode ser dita propriamente orgânica, já que não é mais formada nos ambientes coletivos livre de vigilância. 

Isso porque as redes são espaços privados organizados por algoritmos complexos em nome da monetização. Segundo Muniz Sodré, esse controle das redes sociais por algoritmos provocam uma falsa percepção de interatividade com o mundo já que essa ferramenta tecnológica tem por função capturar a atenção do cidadão que é também consumidor. Para isso, afasta-se de seu feed aquilo que pode causar-lhe estranheza, repúdio ou desagrado, havendo, portanto, um ambiente virtual personalizado para garantir o engajamento que, por sua vez, gera a esperada monetização. 

Usando as palavras de Eugênio Bucci [1], busca-se o sequestro do olhar que agora é trabalho gerador de riqueza, sendo aquele o fim maior no modelo de negócio das redes sociais de maneira que a qualidade do conteúdo ou as consequências que ele pode trazer, fica em segundo plano: deve circular o que for mais apelativo à atenção. 

Assim, essas redes sociais provocam uma situação caótica onde o exercício da cidadania passa a ser uma espécie de simulacro, criando uma falsa percepção de estar-se falando com o mundo, quando, na verdade, é criado um ambiente narcisístico com os discursos ali travados concentrados em bolhas virtuais criada pelos algoritmos, enfraquecendo a dialética necessária para o debate racional rebaixando os discursos ao que Muniz Sodré qualifica como grau zero de sentido [2]. O que se perde pois, é o exercício pleno da comunicação em toda sua complexidade. 

A praça pública digital tem, portanto, uma equação perigosa quando o assunto são direitos compreendidos no guarda-chuva do Direito à Comunicação; nela, será dado palco e luz especialmente para os conteúdos capazes de gerar lucro em detrimento dos temas caros ao cidadão e à coletividade, ao direito de informar, de ser informado, da liberdade de expressão etc., haja vista que no sistema capitalista é o lucro a grande razão de ser de qualquer negócio: seu sucesso está no número de zeros que houver no balanço financeiro. 

Por essa razão a discussão sobre a regulação dos meios de comunicação requer o olhar cuidadoso para separar essa mistura complicada das esferas pública e privada, sociedade e mercado, haja vista que uma mesma ação pode ter resultados absolutamente distintos a depender a premissa sob a qual ela se opera. Pelo dito de forma breve acima, as interações públicas ocorridas nas redes sociai privadas possuem filtros cuja função não é a realização da vida cidadã do indivíduo, mas a realização do capital. 

Nesse sentido, as discussões sobre regulação precisam atravessar extratos que perpassam diversas questões como tecnologia, poder público, legislação, poder e finanças. Já discutimos no JDL (Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade) algumas como a questão dos deveres da comunicação pública e governamental diante da interpenetração crescente entre espaços públicos e privados na esfera digital no seminário com Caio Vieira Machado, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Liberdade e Autoritarismo (LAUT) [3]; sobre os direitos das plataformas digitais e disputas de conteúdos jornalísticos e autorais com Guilherme Carboni, professor doutor da FGVLAW e especialista em direitos autorais [4]. Nessas oportunidades abordou-se sobre os deveres do Estado em garantir o acesso à informação pública e sobre como agir legislativamente em face das plataformas digitais que usam a comunicação como um produto. 

Mas a complexidade não se encerra nesses temas. Tendo a nova configuração de mundo colocado o indivíduo como o centro produtor de valor monetário, seja com o fornecimento de seus dados pessoais, seja como o conteúdo que produz para as redes, seja com o dispêndio de atenção para as telas eletrônicas, é urgente o estabelecimento de marcos legais que tenham como pedra fundamental a garantia da existência do indivíduo enquanto ser de direitos. 

Nesse sentido Camilo Vannuchi, pesquisador também integrante do JDL, em sua tese de doutorado Direito Humano à Comunicação: fundamentos para um novo paradigma na regulação dos meios no Brasil [5], defende que para regular a comunicação, o olhar somente para o sistema de mercado não é suficiente sendo preciso estabelecer um paradigma com primado nos direitos humanos.

Essa discussão será um dos grandes motes do ano no JDL, entrando na pauta já nos primeiros encontros de 2022 o qual será certamente intenso, pedindo vigilância frente aos fatos que essa primeira eleição presidencial pós 2018 exigirá para a manutenção do Estado Democrático de Direito e para a evolução na caminhada rumo a uma comunicação racional e produtora de subjetividades a partir da liberdade não apenas de lucrar, mas também de existir.  

___

Notas:

[1] BUCCI, Eugênio. A Superindústria do Imaginário: Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. 2021.

[2] SODRÈ, Muniz. A sociedade Incivil: mídia, liberalismo e finanças. 1º ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. 2021

[3] Seminário “Direito à Informação, Mídias Digitais e Poder Público” in: https://www.youtube.com/watch?v=_doH_hoBKvk 

[4] Encontro “Direitos das Plataformas Digitais e Disputas sobre Conteúdos Jornalísticos e Autorais” in https://www.youtube.com/watch?v=UdNhAPetvlI 

[5] VANNUCHI, Camilo Morano. Direito humano à comunicação: fundamentos para um novo paradigma na regulação dos meios no Brasil; Orientador: Eungênio Bucci. 2020. In: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27164/tde-26022021-222743/pt-br.php

***

Carolina Mansinho é advogada especializada em Propriedade Intelectual e membro do Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP ( https://jdlusp.org/).