Nos anos 90 vimos consolidar-se uma revolução transfronteiras na troca de informações, com a generalização da internet em sua forma gráfica, amigável e interativa conhecida genericamente como a world wide web (ou simplesmente ‘a web’).
Agora observamos o aprofundamento de uma transição crucial na distribuição de meios audiovisuais digitais (filmes, vídeos, jogos digitais, áudio) – provavelmente uma outra revolução que está aterrorizando as distribuidoras de mídia tal como as conhecemos hoje. Sim, estas ainda conseguem entre 40% e 100% de seus lucros com a distribuição de conteúdo digital estampado em discos plásticos chamados CDs ou DVDs, mas tudo o que fizeram até agora para impedir a distribuição livre (autorizada ou não) do conteúdo desses plásticos via internet tem sido em vão, e tem sido pouco eficaz na repressão às cópias não autorizadas distribuídas mundialmente e vendidas a uma pequena fração do custo original.
A indústria ainda insiste em lançar discos plásticos a preços dezenas de vezes maiores que o custo de impressão e várias vezes maiores que o custo de distribuição – imaginemos uma família européia, confrontada com duas opções para adquirir um filme recém-lançado em DVD que provavelmente vai ser visto em casa não mais de duas ou três vezes: uma, em uma caixa selada em plástico transparente, em uma loja de discos, a 40 euros; outra, em uma feira qualquer ou na esquina de um supermercado, a quatro euros, provavelmente em um envelope plástico envolto em outro de papel. Esta última é ilegal, segundo as leis de propriedade intelectual, mas qual opção a família escolherá?
Concorrência ambulante
As estatísticas mostram que a maioria está escolhendo cada vez mais a segunda opção da Espanha à Rússia, por óbvias razões econômicas, mas também porque muitas vezes só encontra certos filmes ou música com esses vendedores ‘da esquina’.
A pressão sobre as gravadoras é composta de dois movimentos:
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reimpressão dos discos e revenda em mercados informais (ou mesmo formais) em praticamente qualquer país a preços muitas vezes menores que o cobrado pelas distribuidoras. Nada que a indústria tenha feito para impedir a cópia ou reimpressão tem funcionado, e nos atuais formatos é praticamente certo que não funcionarão, como estão cansados de demonstrar especialistas como Cory Doctorow e outros.**
troca de arquivos entre pares (conhecida como P2P, de ‘peer-to-peer networking’), que permite a cópia direta de arquivos entre dois computadores conectados à internet, até mesmo quando protegidos por barreiras de proteção conhecidas como ‘firewalls’. Sistemas cada vez mais sofisticados de endereçamento permitem procurar bilhões de arquivos em dezenas de milhões de máquinas, em uma rede de intercâmbio que se expande aceleradamente com o aumento mundial da oferta de conexões caseiras de banda larga. Só uma dessas redes P2P, a eDonkey (conhecida pelos programas de acesso livres como Emule e Overnet) permite localizar mais de 300 milhões de arquivos distribuídos em cerca de três milhões de microcomputadores.Estes dois movimentos são combinados de modo que revendedores informais podem ser também proprietários de uma distribuidora completa consistindo apenas de um microcomputador, uma impressora, uma boa conexão de banda larga e um ou mais gravadores de CD/DVD. Isso permite a distribuição rápida de filmes ou CDs de música que estão agora mesmo sendo lançados ou estreando nos cinemas (particularmente em mercados em que esses lançamentos chegam atrasados).
Mas essa combinação também envolve operações comerciais em grande escala que fazem exatamente o que a distribuidora original faz: estampam grandes quantidades de CDs ou DVDs copiados em fábricas na China ou Rússia, por exemplo, que escoam por uma rede mundial envolvendo milhões de vendedores de rua mundo afora (e alguns milhares de lojas legalmente estabelecidas também).
Mudança radical
Isso constitui uma estrutura competitiva imbatível (comercial ou não) que condena à morte (não tão lenta) o atual paradigma de distribuição de meios digitais. Afinal, quem não quiser arriscar comprar do ‘pirata da esquina’ e tem computador com banda larga, pode baixar qualquer de bilhões de arquivos disponíveis na internet em poucos minutos (no caso de músicas) ou algumas horas (no caso de filmes completos) em uma rede P2P. Tecnologias como DivX permitem comprimir um filme de um DVD em um vídeo que cabe em um CD comum com qualidade de som e imagem melhor que uma boa fita VHS – e com a vantagem de tomar oito vezes menos tempo para baixar em uma rede P2P.
Na escala em que está hoje o intercâmbio P2P, o cartel das distribuidoras teria que processar praticamente qualquer usuário de computador que tenha banda larga em casa (uma conexão ADSL ou via TV a cabo, ou ainda via rádio, por exemplo). A idéia de processar centenas de milhões de pessoas mundo afora, que em sua quase totalidade apenas baixam arquivos por conveniência e uso doméstico, soa viável ou ridícula? Claramente este não é o caminho para salvar a indústria.
Uma mudança radical no negócio de distribuição de meios digitais certamente já se avizinha. É difícil imaginar qualquer cenário que não leve em conta a capacidade de compartilhar livremente informações da internet, que tende a expandir-se muito mais à medida que a oferta de banda na ‘última milha’ se amplia e o preço por minuto se reduz – parece incrível, mas até no Brasil essa redução de preço vai acabar acontecendo, apesar do cartel da telefonia fixa. Mas é certo também que já há empreendimentos em grande escala de distribuição legalizada (o exemplo da moda é o iTunes, da Apple) que funciona em seu mercado de país desenvolvido – onde pagar R$ 3 por música baixada é irrisório para a maioria dos internautas. Em resumo, os dois mundos irão coexistir por muito, muito tempo – bilhões de arquivos livremente distribuídos em rede P2P e fora do controle das gravadoras, e outros tantos sendo baixados a um preço finalmente acessível em determinados mercados.
Cadeia proprietária
Os problemas são similares para as distribuidoras de software proprietário (o software em que é preciso comprar licenças para utilizá-lo, sob condições de contrato em geral muito rígidas). No entanto a indústria de software proprietário descobriu muito antes das gravadoras de música e vídeo a distribuição via rede, tendo hoje mecanismos sofisticados de venda e atualização sem envolver a entrega de meio físico – que no entanto não impedem a cópia e redistribuição via redes P2P. Para a indústria de mídia, no entanto, essa forma de distribuição limita o seu mercado, já que apenas uma pequena parcela da população tem computador e um número ainda menor está bem conectado à internet na maioria dos países.
É interessante ver até onde vai a convergência nos métodos de distribuição e de controle da propriedade intelectual para todas as, digamos, espécies de código – do código de programas e mídia ao código genético (que pode ser visto como uma combinação de seqüenciamento digital e métodos de modificação de bioestruturas).
Em todos esses casos (como no caso de qualquer outra autoria que possa gerar lucro), se você é uma autora, escreve música, software ou seqüenciamento genético e concorda em vender seus direitos a uma empresa, estes passam à categoria de propriedade intelectual da empresa. Se você não gostar, não adianta procurar a OMPI, seu advogado ou o Santo Papa – sua criação virou um insumo de uma cadeia proprietária de serviços e não há nada (juridicamente falando) que você possa fazer contra isso.
Semente antimonopólio
No entanto há algumas diferenças significativas entre essas indústrias. Enquanto no caso das gravadoras a regra é a diversidade de conteúdo (não há uma única banda de rock ou produtora de filmes), na indústria de software pronto há pelo menos um caso de quase-monopólio mundial na prática, representado pelo sistema operacional proprietário MS Windows e os aplicativos de consumo associados, de propriedade da Microsoft Corporation. É uma operação verticalizada – da produçaõ de conteúdo à distribuição. Se houvesse uma equivalente no campo da música, por exemplo, seria como se houvesse uma única banda produzindo conteúdo musical para uma única gravadora (ambas da mesma empresa) que dominaria mais de 95% do mercado em quase todos os paises.
No mundo ideal da Microsoft (e ela trabalha dia e noite para alcançar isso), todo computador pessoal, estação de trabalho ou servidor estaria rodando o sistema operacional Windows e um conjunto de aplicativos da Microsoft – ainda mais, nesse mundo os principais serviços internet seriam também de propriedade da empresa. Nesse mundo Windows, de algum modo todos os anos (ou meses) cada usuário de computador em qualquer parte do mundo estaria pagando algo à Microsoft. Tudo o que ameace esta estratégia é publicamente denunciado como uma ameaça à ‘inovação e liberdade de escolha’.
A Microsoft realmente já teria conseguido conquistar quase todo esse espaço, se não fosse uma iniciativa (semeada nos idos da década de 80 nos EUA) em comunidades de programadores, trazendo uma nova proposta sobre como criar, manter e distribuir software. A semente veio da Fundação do Software Livre (FSF), em 1984, com sua formulação de uma licença de distribuição de código-fonte (o código de um programa de computador que é legível por um humano, que assim pode entendê-lo e modificá-lo), conhecida genericamente como Licença Pública Geral (GPL). Em torno desse conceito nasceu a idéia de produzir sistemas com a mesma funcionalidade do sistema operacional proprietário UNIX e aplicativos associados, cujo conjunto passou a ser conhecido como GNU (‘GNU is not UNIX’).
Equivalente livre
Dessa semente derivaram-se várias correntes de produção e distribuição de código, em que a de maior sucesso tem sido a comunidade em torno do GNU/Linux. Nascido de uma tese de pósgraduação de um estudante finlandês (Linus Torvalds), o Linux virou o centro em torno do qual milhares de programadores em todo o mundo vêm desenvolvendo cooperativamente aplicativos e colaborando no aperfeiçoamento do próprio sistema operacional. O movimento voluntário do início despertou o interesse de grandes empresas e investidores, e hoje o universo do Linux é apoiado tanto por programadores voluntários como por especialistas bem remunerados de empresas com IBM, Red Hat, Sun, Oracle e outras, além de muitas universidades.
Mas foi somente há cerca de cinco anos que esta nova proposta começou a representar uma ameaça real à Microsoft, com uma clara oportunidade de competir no terreno principal – o mercado de software pronto, de varejo ou de consumo, os sistemas de uso geral que qualquer pessoa que tem um computador em casa precisa para com ele criar um texto, navegar na internet, ouvir música etc. Avanços nesses aplicativos já competem com o mundo Windows em condições iguais ou até melhores.
Assim, o GNU/Linux, um equivalente livre do Unix nascido 10 anos depois da proposta GPL, tem hoje uma interface gráfica sofisticada, tão amigável quanto o Windows e bem mais estável, versões (conhecidas como distribuições) fáceis de instalar e completas – não é necessário buscar ou adquirir nenhum programa em separado para ter toda a funcionalidade típica de um computador de escritório ou doméstico. Além de não ser necessário pagar por nenhuma licença, as melhores distribuições permitem também atualização fácil e gratuita via internet de todos os aplicativos.
Informação codificada
E mais: o código-fonte de todo o sistema e aplicativos está publicamente disponível sem custo. Esse conjunto de características relativas ao licenciamento e distribuição caracterizam o software livre de código aberto (SLCA) como um marco fundamental na conquista social da liberdade do conhecimento. Hoje o SLCA é distribuído sob uma variedade de licenças (GPL, LGPL, variações da proposta Creative Commons etc), todas garantindo as liberdades básicas de acesso, uso, modificação e redistribuição, e cobre a totalidade do universo de processamento e comunicação de dados. O GNU/Linux está embutido em equipamentos de rádio digital da Cisco. O sistema mundial de reservas aéreas SABRE está migrando para GNU/Linux e o sistema SLCA de banco dados mySQL. Sensores biométricos para controle de acesso utilizam GNU/Linux, que também domina hoje os complexos de renderização (alguns envolvendo milhares de computadores operando em conjunto) na indústria do cinema, de ‘Titanic’ a ‘Shrek 2’ e ‘Senhor dos Anéis’.
Tal como na indústria de mídia, as empresas de software já estão buscando seus espaços nesse novo paradigma – afinal, o software é livre mas há uma infinidade de serviços a serem prestados, e estes não são gratuitos. O governo federal no Brasil, por exemplo, optou por uma estratégia de adoção de SLCA em todos os níveis da administração pública, incluindo os computadores ‘na ponta’ – postos de atendimento, escolas públicas, telecentros comunitários etc. O objetivo é eliminar a dependência de um só fornecedor, ter acesso ao código-fonte por questões de segurança e reduzir custos anuais de alguns bilhões de dólares só em renovação ou aquisição de licenças proprietárias.
As diferenças já comentadas entre a distribuição de mídia e de software-proprietário colocam esta última em posição mais próxima da indústria de sementes OGM (organismos geneticamente modificados), com um detalhe: no mercado de OGMs há um pequeno grupo de grandes conglomerados que controlam o mercado internacional de sementes e as correspondentes patentes de bioestruturas, sem predominância absoluta de uma ou outra, enquanto do lado do mercado de software-proprietário de consumo há quase que somente a Microsoft. Mas a questão central em ambos os casos é a mesma: software e código genético são da mesma natureza básica – informação codificada que pode ser proprietária ou não. Assim, a discussão de software proprietário e de OGMs patenteados freqüentemente envolve pelo menos um tema comum – liberdade de acesso e propriedade intelectual dos respectivos códigos. De fato, o contrato de licenciamento de uma caixa do Microsoft Office ou de uma saca de sementes Monsanto tem muitas similaridades, e isso não deveria ser surpresa.
DVD no espremedor
Na luta política contra os OGMs esse aspecto do problema costuma ser deixado de lado, Além dos fatos obviamente relevantes da natureza (efeitos reais ou potenciais no meio ambiente, na saúde animal e humana etc), não se pode ignorar fatos como, por exemplo, que um país como o Brasil – um dos líderes mundiais na exportação de grãos, que conquistou essa posição sem o emprego de OGMs – estará em uma posição muito vulnerável se sua produção basear-se em sementes proprietárias de empresas de um país que é seu principal competidor no mesmo mercado, ou seja, os EUA.
Uma conclusão comum: em software, OGMs e em muitos aspectos na mídia digital, não devemos apenas estar preocupados com a liberdade de acesso, distribuição e uso, versus um esquema restritivo e pago (com preços de monopólio) de licenciamento, mas também com as conseqüências da cartelização ou monopolização do mercado mundial de código proprietário, que no campo do software (que também afeta a distribuição de mídia digital) está cada vez mais desafiado pelas tecnologias SLCA.
Interessante notar, por exemplo que, se dependesse das gravadoras, os usuários de GNU/Linux nunca poderiam ver um DVD em seus computadores, o que é incompreensível (afinal, quanto mais usuários puderem comprar DVDs, melhor para a indústria). Ou seja, as gravadoras tentaram também impor a decisão de qual equipamento doméstico o consumidor pode usar (algo como um vendedor de laranjas que só permite que se faça suco em determinada marca de espremedor). Mas hoje os usuários Linux podem ler DVDs graças à persistência corajosa das comunidades de programadores de SLCA.
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Diretor de Planejamento e Estratégias da Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits)