Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os cruzados da liberdade de imprensa

No Brasil podemos falar, expressar, publicar opinião sobre quase tudo. Podemos, por exemplo, fazer propaganda de papel higiênico – como aquela da DPZ para a empresa que fabrica o de marca Neve – usando e abusando da imagem e da voz do presidente da República de sua ministra-chefe da Casa Civil.

Podemos publicar artigo de página inteira em um dos maiores jornais do Brasil, que chega a vender a média diária de 26 mil exemplares em bancas de jornal existentes no percurso que liga o Oiapoque ao Chuí (estamos falando da Folha de S.Paulo), de autor relatando no generoso espaço reminiscências sobre os tempos da última ditadura no Brasil e, ilustrado com fotograma do filme Lula, o filho do Brasil, para ao fim execrar o comportamento do presidente brasileiro. Isso pode.

No Brasil podemos também ser mais bem informados sobre o desenvolvimento do país por meio da repercussão que aqui temos de matérias sobre o país publicadas em veículos como Newsweek, The Economist, Der Spiegel, Le Monde, The New York Times, El País.

A propósito do filme citado, qualquer coisa pode ser publicado. Espaço maior será sempre concedido àqueles que torçam o nariz para o filme e àqueles que ameaçam formar o bloco, pequeno é verdade, dos ‘que não viram e não gostaram’. É permitido esmiuçar a lista das empresas que bancaram o filme: serão espinafradas se forem estatais ou de economia mista e serão espinafradas igualmente se as empresas forem da chamada iniciativa privada, pois certamente estas deverão manter contratos comerciais e financeiros com o governo. Ou seja, o veredicto uma vez proferido não comporta qualquer outra opção. Espinafre-se, então.

Crime inominável

Podemos fazer conferências nacionais para tratar de muitos assuntos. Dentre estes o debate pode correr solto se abordar saúde pública, meio ambiente, uso dos recursos naturais, políticas públicas para populações vulneráveis. Isso também pode.

É-nos concedida permissão para ser contra ou a favor das chamadas ações afirmativas, aquelas que pretendem diminuir o fosso a separar os brancos dos negros e dos índios, os muito ricos dos muito pobres. Podemos ter capa de revista imageticamente demonizando ‘líder do movimento dos sem terra’ e minuciosos infográficos dando conta das horas em que 18 estados brasileiros estiveram sem energia elétrica. Isso pode? Claro, pode também.

Então, o que não pode? Ah, isso é complicado. Qualquer coisa que pretenda chamar a mídia aos carretéis, por mais sutil ou superficial que seja… isso, definitivamente, não pode. Conferência Nacional de Comunicação pode? Claro que não. Minto. Até pode, mas desde que seja bem esvaziada, ou seja, não estarão presentes, por ato de voluntarismo, as principais entidades de classe de jornais, revistas e empresas de comunicação, representantes de emissoras de televisão e de rádio.

É que no Brasil atual qualquer debate, por mais incipiente que seja, que busque chamar os meios de comunicação – em especial os eletrônicos – à responsabilidade, já que desfrutam de um concessão do poder público, é logo rotulada e atacada como sendo crime de lesa-pátria, crime de lesa-humanidade. E as palavras escandidas não são outras que a pretensa defesa da liberdade de imprensa. Afinal, será que existem realmente defensores da liberdade de imprensa no Brasil? Não seria a defesa pura e simples da liberdade de empresa?

Pergunta necessária

Faça-se uma pesquisa, como fiz há poucos meses, com capas de revistas semanais e com primeiras páginas dos jornalões brasileiros e veremos que o que não falta é liberdade de opinião. No Brasil você pode recorrer do síndico de seu edifício, recorrer de multa eletrônica aplicada pelos ‘pardais’ espalhados a torto e a direito aos que furam sinal vermelho ou dirigem em velocidade superior à permitida. Podemos recorrer de tarifas abusivas cobradas por agências bancárias e por empresas concessionárias de água e luz. Mas não podemos recorrer, com razoável segurança, quando quem ataca é detentor de veículo de comunicação.

O direito de resposta, se ainda sobrevive, só pode ser encontrado nas brumas de Avalon. É como se a liberdade de imprensa tivesse sido privatizada. Somente alguns podem falar em nome dela e se sentem duplamente legitimados se em suas mãos encontram-se as maiores empresas de comunicação do país.

Aos que se autointitulam guardiães da liberdade de imprensa defeito algum se há de encontrar, falha alguma há de ser apontada. A estes deveria calar fundo o ‘Poema em linha reta’ de Fernando Pessoa, do qual retenho estes flamejantes versos:

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

 

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Aos que desfraldam bandeiras como a liberdade de imprensa sempre que o ambiente enseja o debate sobre a democratização dos meios de comunicação no Brasil, ou sempre que alguém percebe e bota a boca no trombone a denunciar a extrema concentração de 82% dos meios midiáticos do país controlados por tão somente meia dúzia de felizes empresários, caberia aqui uma pergunta: que interesses subalternos se escondem sob o manto, sempre tentador, da defesa da liberdade de imprensa?

******

Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter