Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A Medalha do Cinismo e da Hipocrisia

(Foto: Pixabay)

O governo Bolsonaro ultrapassou o limite da decência ao se autoconceder uma medalha como reconhecimento pelos relevantes serviços prestados, de maneira altruísta, em matéria de bem-estar, proteção e defesa das comunidades indígenas. Essa autopremiação está provocando reações de repúdio nas entidades indígenas e de respeito aos direitos humanos porque não é apenas ridícula, é bem mais grave: é insultuosa. Trata-se de uma ofensa e um acinte para os povos indígenas.

Essa portaria, assinada pelo ministro da Justiça Anderson Gustavo Torres, concedendo a ele próprio, ao presidente Jair Bolsonaro e a outros 24 membros do governo, a medalha do Mérito Indigenista, deveria ter um nome mais apropriado – Medalha do Cinismo e da Hipocrisia.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) é mais radical e propõe o nome de Medalha do Genocídio Indígena ao presidente Bolsonaro. E essa indignação é bem compreensível, pois entre os agraciados com a condecoração está a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina Correa da Costa Dias, premiada, quando deputada federal, como “a maior defensora do agronegócio brasileiro”. Ora, a grande luta na qual está empenhado o agronegócio é a de aumentar a área das terras cultiváveis e das terras destinadas à criação de gado, seja pelo desmatamento ou pela apropriação das “excessivas” terras entregues aos indígenas.

O presidente Bolsonaro, agora travestido em defensor do povo indígena, utilizou na sua campanha presidencial a frase do agronegócio “muita terra para poucos índios” e, nestes três anos de mandato, vem procurando diminuir as terras das reservas indígenas com a proposta do “marco temporário” em julgamento no STF.

Existem atualmente três processos no Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda, contra o presidente Bolsonaro por genocídio contra indígenas. De acordo com o jornal El País, citando as acusações feitas nesses processos, “Bolsonaro descumpre a Constituição de 1988, que garante a proteção dessas comunidades e o direito aos seus territórios. Ele não só inviabiliza a demarcação das terras indígenas como a proteção das comunidades com áreas já garantidas por lei, ao incentivar a presença de grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais.”  

Os processos contra Bolsonaro foram impetrados pela Articulação dos Povos Indígenas, pelo coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e pela Comissão Arns por “indícios de crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio de povos indígenas praticados por Bolsonaro”. Na Comissão de Direitos Humanos, a relatora da ONU também citou o genocídio contra indígenas cometido pelo governo Bolsonaro.

De acordo com a advogada Juliana Vieira dos Santos, da Comissão Arns, “o Governo Bolsonaro sistematizou uma “política anti-indigenista” no país. O próprio Supremo Tribunal Federal não tem conseguido proteger as populações indígenas, porque tem toda a máquina do Executivo se movimentando contra elas,” disse ela ao El País.

A concessão indevida e abusiva de medalha como protetor dos indígenas a Bolsonaro me chegou como informação vinda da Funai, que imaginei falsa ou fake news por ser tão absurda, mesmo porque essa medalha já havia sido concedida a defensores dos índios como Darcy Ribeiro, dom Pedro Casaldáliga e outros que lutaram pelos nossos índios. A notícia de estar sendo concedida a pessoas empenhadas em destruir a cultura indígena, além de destruir suas aldeias com os desmatamentos, mais o processo de aculturá-los para se tornarem empregados dos ruralistas, sem se falar nos indígenas assassinados por esse governo, tudo isso parecia aviltante demais.

No clima de cinismo e hipocrisia da cerimônia de entrega das medalhas, na qual Bolsonaro tinha nos braços uma indiazinha, foram também entregues cocares aos “defensores” dos indígenas. Uma outra ofensa ao povo indígena, induzido também a trocar seus cultos ancestrais pelo culto dos evangélicos norte-americanos. Houve jornalista lembrando que “dá azar” colocar um cocar na cabeça quando não se é índio. 

A entrega da medalha trouxe à atualidade uma frase pronunciada há alguns anos, no dia 15 de abril de 1998, num discurso na Câmara Federal, pelo deputado Jair Bolsonaro, constante do Diário Oficial, frase bastante reveladora, quando se discutia a política de demarcação de terras na Amazônia. “Até vale uma observação neste momento: realmente, a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e, hoje em dia, não tem esse problema em seu país”. Talvez percebendo ter ido longe demais, Bolsonaro tentou emendar sua frase com um adendo: “Se bem que não prego que façam a mesma coisa com o índio brasileiro; recomendo apenas o que foi idealizado há alguns anos, que seja demarcar reservas indígenas em tamanho compatível com a população”.

A frase elogiando a cavalaria norte-americana destruidora dos índios, me fez lembrar de um livro do escritor Howard Fast sobre massacres de índios nos EUA, A Última Fronteira. Ele descreve o povo indígena que habitava a América do Norte em aldeias que se estendiam do Atlântico ao Pacífico. Na introdução ao massacre dos cheyennes, ele comenta um erro imperdoável desse povo indígena – “eles achavam que o solo no qual sempre viveram era deles. Era uma crença tão forte pela qual lutavam e morriam. Eles se defenderam, como sabem se defender os selvagens, eles lutaram pelo que acreditavam ser sua pátria”.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.