Artigo é o gênero ou a estratégia discursiva usada pelo jornal para comunicar idéias. Não que idéias deixem de passar pelo editorial, pela crônica, pela carta do leitor ou até mesmo por determinados tipos de notícia, mas o artigo oferece a chance de se abordar um tema por ângulos diversos, senão pelo manejo de conceitos. É alta a taxa de banalidade desse gênero, mas não raro aparecem textos curtos de amplo valor cognitivo.
Um desses é o artigo (O Globo, 10/11/2004) do advogado João Geraldo Piquet Carneiro, sobre o relatório do Banco Mundial (Doing Business in 2005) que aponta o Brasil como um dos países mais burocratizados do mundo, o que acarreta entraves inimagináveis pelo incauto ao desenvolvimento das atividades econômicas.
Basta mencionar que ‘a criação de uma empresa, desde seu registro até o efetivo funcionamento, consome 155 dias – mais do que o dobro verificado nos demais países da América Latina e do Caribe e seis vezes mais do que a média dos países da OCDE’. Para não falar do absurdo: ‘Para fechar uma empresa, são necessários dez anos, três vezes mais do que no resto da América Latina e seis vezes mais do que nos países desenvolvidos’.
Há uma espécie de ‘herança histórica maldita’ nesse fenômeno. É comum recorrer-se à explicação sobre os modos de formação do Estado brasileiro, herdeiro do patrimonialismo português, em que funcionários e bacharéis usavam as leis e a burocracia como instrumentos de opressão das classes subalternas e como biombo para o máximo proveito do grupo dirigente.
De fato, a colonização obedeceu desde cedo à lógica de um capitalismo politicamente orientado para fundar na América do Sul um prolongamento do Estado português. Figuras importantes do estamento dirigente luso transferem-se para o Brasil, que é de fato um ‘negócio do rei’ (o sufixo eiro, de ‘brasileiro’, designa uma profissão, como bem se sabe), integrado na estrutura patrimonial e financiado por banqueiros e grandes comerciantes europeus, especialmente genoveses e marranos.
Pioneirismo esquecido
O espírito de centralidade patrimonialista, que a princípio só se fazia sentir no litoral, expande-se para os sertões com a abertura das minas. Nobres da terra (senhores rurais), cristãos-novos, mascates e administradores compõem a oligarquia dirigente. Os funcionários valem-se de seus cargos como se fossem títulos, de maneira privatista, arbitrária e ineficiente, razão pela qual o Estado burocrático-patrimonialista, autônomo frente à sociedade, é percebido como algo à parte, um ‘monstro sem alma’. É de Nietzsche, aliás, a definição de Estado como ‘um monstro frio’.
Não se trata, porém, de explicar o flagelo burocrático pela pura e simples prevalência do patrimonialismo ibérico, como se fossemos inapelavelmente escravos de um passado colonial. Esta é a boa advertência do artigo de Piquet Carneiro, ao frisar que ‘na realidade, o que ocorreu no Brasil foi o encontro perverso da cultura centralizadora subjacente da administração pública com a necessidade de reequilíbrio das contas públicas devastadas pela crise fiscal’. Assim, valores republicanos – tais como justiça fiscal e outras referências democráticas – são deixados de lado em função de um interminável ajuste fiscal, que gera políticas tributárias antidemocráticas, já que seu único horizonte é o aumento da arrecadação em detrimento da qualidade do gasto.
Curioso é que, em meio a uma história dessas, o Brasil foi pioneiro em reformas administrativas na América Latina, desde as famosas autarquias da Era Vargas, passando por medidas modernizadoras como a criação do BNDES, da Petrobras e da Companhia Siderúrgica Nacional.
A polis vai parar
Mais curioso ainda é que, em plena ditadura militar, como assinala Piquet Carneiro, ‘criou-se o Programa Nacional de Desburocratização, sob a direção de Hélio Beltrão, voltado para a simplificação administrativa, o tratamento diferenciado das pequenas empresas, a simplificação das Juntas Comerciais, o acesso dos pobres à Justiça e o combate sistemático as formas centralizadas de gestão pública’.
Qual o interesse imediato desse assunto, tão bem suscitado pelo artigo de um advogado, para a imprensa? É que nos encontramos em atroz retrocesso no que diz respeito à eficiência administrativa no serviço público, apesar de toda a parafernália dos computadores. Bolsa-Família e Fome Zero que o digam.
Quase diariamente lemos matérias nos jornais sobre a ineficácia de programas sociais do governo, sobre a incapacidade de ministérios de encaminhar soluções, ainda que banais, para problemas aflitivos da população. Mas nada lemos de proveitoso sobre as graves causas dessa regressão ao estágio em que a produção e a cidadania são sufocadas pelo velho ‘monstro frio’ – talvez porque seja ela um flagelo de baixa visibilidade, talvez porque, como no passado patrimonial, esteja em voga a ordem dos banqueiros e não dos produtores.
O fato é que Brasília se transformou no Parque Jurássico do papelório, com dinossauros peritos na informática que, aliás, os criou, mas lamentavelmente sentados sobre o peito da inteligência e da produção.
Queremos crer que seja tarefa de um jornalismo cívico alertar o seu público, toda vez que um ministro de governo anuncia à mídia a ‘reforma da vez’, no sentido de que nada daquilo vai realmente funcionar sem uma ‘reforma da reforma’. Entenda-se: a exemplo do trânsito do Rio e de São Paulo, a polis vai parar se não houver uma reforma administrativa de peso.
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Jornalista, escritor, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro