O artigo de César Benjamin cuja publicação fere não apenas as normas do bom senso, mas preceitos básicos da ética jornalística, parece marcar um novo patamar na relação do público leitor com o jornal Folha de S.Paulo – ou, para muitos, demarcar o fim dela.
Pois informações de bastidores, colhidas junto a duas fontes que trabalham no jornal, dão conta que o volume de cancelamentos de assinatura após o caso é inédito e mobiliza a direção do jornal – indício reforçado pelo fato de que as telefonistas da empresa foram instruídas a ‘justificar’ aos que ligam para cancelar suas assinaturas devido ao ‘caso Cesinha’ que a Folha teria cedido amplo direito de resposta e ouvido fontes diversas que se contrapuseram à visão oferecida pelo artigo. Infelizmente, devido à lentidão no processamento e ao difícil acesso aos dados, não é possível ainda corroborar tais informações e quantificar o número exato de cancelamentos junto aos órgãos verificadores de circulação.
O volume de protestos enviados ao ombudsman do jornal é mais um forte indício da insatisfação que o artigo de César Benjamin provocou. Das 219 cartas recebidas por Carlos Eduardo Lins da Silva, 210 criticavam o artigo, o que parece ter motivado o ouvidor a sair da postura para mim decepcionante que de início tomou – alegando não fazer parte do escopo de suas atribuições fazer juízo de valor sobre conteúdos opinativos (como se não houvesse uma série de decisões editoriais que antecedessem a publicação).
Notificação a um blogueiro
Com efeito, na coluna de domingo (6/12), Lins da Silva subiu o tom de forma inédita, reconhecendo que o saldo do episódio não é bom para o jornal e sustentando que:
‘Quando há acusação grave envolvida, o jornal deve ser especialmente cauteloso. Uma boa política editorial aconselha que mesmo em artigos seja feita uma checagem cuidadosa dos fatos relatados, sempre preservando a argumentação defendida pelo autor’.
A reação à leviandade do jornal no ‘caso Cesinha’ foi intensa e multiplicadora. Além do artigo de Alberto Dines neste Observatório, com o significativo título de ‘Lixo em estado puro’, o ataque difamatório assinado por César Benjamin – covardemente travestido de ‘análise’ do filme Lula, o Filho do Brasil – foi tema de dezenas de textos e posts, na internet ou fora dela (dos quais eu destacaria ‘A patética esquerda sem povo‘, escrito por Luiz Carlos Azenha).
No bojo da repercussão do artigo, ganhou força, na blogosfera e no Twitter, uma campanha de boicote à Folha de S.Paulo e ao portal UOL. Utilizando selos com logotipos de tais órgãos, ela se espalhou rapidamente pela internet. Até que ponto tal campanha possa estar colaborando para a onda de cancelamentos de assinaturas permanece uma questão em aberto.
O modo que o Grupo Folha escolheu para reagir foi enviar uma notificação extrajudicial a um dos blogueiros envolvidos, Antonio Arles, para que este ‘retirasse os selos da campanha #CancelandoFOLHA #CancelandoUOL, sob pena de processo por suposto uso indevido das marcas’.
Falta de hábito deste tipo de campanha
Advogados divergem quanto à procedência da ação. Alguns defendem que, sendo campanhas de boicote formas legítimas de exercício da cidadania, o direito à utilização das logomarcas se justificaria pela invocação do fair use. Outros, aparentemente em maioria, alegam ser pleno e incontestável o direito de o Grupo Folha de controlar o uso que se faz das marcas que detém. No entanto, no âmbito deste artigo, interessa menos uma análise do caso sob um ponto de vista jurídico do que seu exame conjuntural.
Pois a reação da blogosfera foi fulminante e imediata: interpretando a medida como uma tentativa de intimidação, e alegando ter sido Arles vítima de censura, intensificou a campanha através de usos inventivos e legais de novas logomarcas: Falha ou Falha de São Serra no lugar do nome verdadeiro do jornal; logomarcas irônicas diversas, como o desenho de um esgoto a céu aberto cujo jato de água forma a palavra Falha, ou com uma reprodução da ficha falsa de Dilma, ou aludindo ao documentado, digamos, ‘apoio estratégico’ que o jornal dera à ditadura, todas com dizeres divulgando a campanha de cancelamento de assinaturas. A blogueira Maria Frô vai além e propõe que o boicote se estenda aos anunciantes do jornal, listando várias empresas nesta condição.
Pode-se criticar a campanha ora em andamento sob diversos prismas, mas não se pode negar o direito a promovê-la. O Brasil – ao contrário, por exemplo, dos EUA – não é um país acostumado a campanhas de boicote e de cancelamento. Tal falta de hábito talvez se relacione à condição sacrossanta à qual os anos de hegemonia neoliberal legaram o setor privado, ou à primazia da questão da corrupção pública como motivo para manifestações populares.
O fundo do poço
A reação da Folha de S.Paulo, ainda que possivelmente justificável do ponto de vista jurídico, demonstra, uma vez mais, o modo anacrônico como o jornal concebe a internet e suas potencialidades cívicas e políticas. Como já ocorrera em outros casos graves protagonizados este ano pela Folha – como o uso do neologismo ‘ditabranda’, o ataque aos professores Benevides e Comparato e o episódio da ficha falsa de Dilma Rousseff –, a reação da direção do órgão, no afã de apagar o fogo, joga mais gasolina na fogueira – no caso, aumentando a indignação na blogosfera e colaborando para difundir a campanha para além dos limites desta.
Tal decisão, por resultar inócua, não seria uma atitude inteligente para nenhum jornal na crise que a imprensa convencional ora vivencia; para a Folha de S.Paulo, em plena derrocada ética e comercial, ela afigura-se desastrosa. Muitos julgaram que com o ‘caso Cesinha’ o jornal atingira o fundo do poço e que era hora de tomar medidas mais drásticas e efetivas de repúdio a tais práticas. Estou entre estes.
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Jornalista, cineasta e doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog