O ainda pobre noticiário sobre a questão das indenizações milionárias destinadas a vítimas em variados graus do regime militar que vigorou no Brasil por 21 anos – basicamente restrito à sucessão de reportagens, entrevistas e artigos que vêm sendo publicados pelo Estado de S. Paulo –, revela um dos vícios da nossa imprensa, reflexo, por sua vez, de outros vícios que denunciam as desigualdades de nossa sociedade e a miséria de nossas relações políticas.
Trata-se da maneira como resolvemos nossas idiossincrasias históricas, de como noticiamos essas propostas de solução e de como conduzimos os debates decorrentes. Tem esse aspecto a atual questão sobre os anistiados, os herdeiros de vítimas fatais e alguns meros oportunistas que recorreram à Lei 10559/02 para obter o que consideram devido pelo Estado por conta de abusos cometidos durante a repressão do regime militar contra militantes esquerdistas, oposicionistas e transeuntes da História. Transeuntes, aqui, no sentido a que se referiu certa vez o filósoto Vilén Flusser sobre aqueles que se tornam protagonistas por haver simplesmente passado em determinado local no momento em que a História acontecia.
O Estado brasileiro, independente de quem esteja à sua cabeça, tem o vício recorrente de responder com padrões inflexíveis às questões mais sutis que se apresentam no processo de construção da nossa democracia. Assim é quando, ao reconhecer genericamente que a sociedade de alguma forma é devedora a parte da sua população por conta dos quase quatro séculos de escravidão imposta aos africanos e seus descendentes, o Estado resolve criar cotas para estudantes identificados como herdeiros dessas gerações de martirizados.
Da mesma forma, ao reconhecer que a sociedade dos brancos, ao se expandir e consolidar, massacrou populações indígenas e lhes tomou as terras, o Estado legisla no sentido de criar reservas para os sobreviventes e oferecer um status diferenciado, supostamente respeitoso de sua condição, ao cidadão identificado como originário de uma das nações nativas.
Em quase todos esses casos, em vez de garantir proteção ou proporcionar o reparo em caso de dívidas históricas, o que se tem obtido com a legislação é mais conflitos, mais sofrimento, mais constrangimento. Os índios não estão garantidos em suas reservas, os afro-descendentes continuam submetidos a salários mais baixos de que os pagos a seus concidadãos de pele clara e a questão das cotas para vagas em universidades, onde foram estabelecidas, é comumente motivo para novas expressões de preconceito.
A imprensa, parceira do Estado na construção dos paradigmas que organizam a sociedade e, de maneira geral, condicionam seu futuro, poderia e deveria exigir mais. Quando uma dessas questões, que extrapolam as meras circunstâncias econômicas ou sociais, se coloca diante das instituições do Estado, movimentando as forças políticas organizadas, seria de grande valia que a imprensa deslocasse os debates para seus pontos de origem, para evitar que as reflexões acabassem, como é praxe, no tempero dos interesses circunstanciais com a corriqueira pitada de correção política.
Mas a imprensa não tem revelado a capacidade de trabalhar com sutilezas. Na rotina, não apenas agasalha como toma partido no jogo dos interesses corporativos. Não por outra razão, a maior parte das medidas tomadas durante o processo de redemocratização do País, incluído o grande embate da Constituinte, tem apresentado como característica uma necessidade do legislador de parecer politicamente correto, independentemente de ser a solução adequada sob o olhar de longo prazo ou o interesse da nacionalidade.
Distorções como as que vêm ocorrendo com base na Lei da Anistia derivam dessa incapacidade de nossos legisladores – tangidos pela opinião organizada na imprensa e originada nas instituições sociais mais poderosas – de encarar as causas mais profundas de nossas mazelas históricas. Representam nossa incapacidade para criar e executar um plano de Nação.
Questões fundamentais para as chances brasileiras de sair do lodaçal do sub-desenvolvimento ainda neste século – como a reforma política, que poderia criar as bases de uma democracia representativa mais satisfatória; uma reforma tributária que nos colocasse em condições de buscar a sustentabilidade da nossa economia; ou a atualização da legislação sindical – encontram-se na pauta dos debates e não há esperança de que venhamos a vislumbrar qualquer sinal de inteligência.
A responsabilidade não é maior e muito menos única da imprensa, vis-à-vis outras importantes instituições, como as representações dos advogados e a universidade. Mas, como caixa de ressonância da sociedade e instrumento preferencial de poder das elites, a imprensa não pode fugir da responsabilidade de estabelecer o patamar mínimo sobre o qual as decisões precisam ser tomadas.
Não há hipótese de encontrarmos um caminho para o desenvolvimento que reduza as diferenças sociais, ou que minimamente ofereça condições de inclusão para os grandes contingentes de brasileiros que estão fora do círculo das oportunidades, enquanto aceitarmos que as soluções sigam sendo o resultado das negociações entre corporações e um mero jogo entre os poderosos – aqueles que têm espaço na mídia.
Uma imprensa que se exigisse mais, que aceitasse o risco de eventualmente contrariar alguns poderosos aliados, teria com certeza mais credibilidade e poderia servir como painel para o urgente projeto de nação de que necessitamos.
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Jornalista