Eu fazia parte da grande maioria dos jornalistas que, em 2018, não acreditava que Jair Bolsonaro fosse eleito presidente do Brasil. Até então ele era apenas um deputado exótico eleito pelo Rio de Janeiro que dizia absurdos que volta e meia viravam manchete quando os noticiários não tinham nada mais interessante para chamar a atenção dos leitores. Uma série de fatores, como o atentado que sofreu e a prisão do seu maior adversário político, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), pelo então juiz da Operação Lava Jato Sergio Moro, o arremessaram à Presidência da República. E como todos os velhos jornalistas que têm tempo, saúde e recursos para pesquisar, gastei horas em busca de informações sobre o que existia por trás da personalidade exótica do novo presidente, além do fato superconhecido dele ter feito uma baita lambança no quartel quando era tenente, o que resultou na sua reforma como capitão. Comecei fazendo o tema de casa lendo o livro O cadete e o capitão, do repórter Luiz Maklouf Carvalho, e todas as reportagens, vídeos e alguns documentos que encontrei pela frente sobre o então novo presidente do Brasil, que iniciou o seu mandato em janeiro de 2019. No meio de uma enxurrada de informações encontrei uma matéria sobre uma conversa de Bolsonaro com os seus colegas da Câmara dos Deputados. Na ocasião, ele tinha dito mais um absurdo que virou manchete nos noticiários internacionais. Assim resumo a conversa dele com os colegas: “Fale bem ou fale mal. Mas fale de mim.”
Não quero ser injusto. Mas não lembro de uma obra do governo Bolsonaro que não sejam as suas brigas contra pessoas e instituições que lhe renderam semanas e semanas de manchetes nos noticiários. O primeiro alvo foi a liberdade de imprensa. A jornalista Patrícia Campos Mello foi uma das vítimas dos ataques do presidente. Ela publicou um livro muito interessante chamado Máquina do Ódio – notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. Até se agravar a pandemia de Covid-19, a ideia que se tinha era que as brigas do presidente tinham como fundo o seu ranço ideológico contra a democracia. Entendi que se manter nas manchetes era uma estratégia de governo. Em março de 2020, publiquei o post “Bolsonaro foi à guerra contra o coronavírus pelas manchetes dos jornais”. Ele se tornou famoso ao redor do mundo devido a suas posições negacionistas sobre o poder de contágio e letalidade do vírus e as recomendações feitas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre como se defender da doença. Graças a esse comportamento do presidente o Brasil foi o segundo país do mundo onde o vírus mais matou. Toda a história está contada no relatório de 1,3 mil páginas produzido pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do Senado, a CPI da Covid, que coloca as digitais do governo Bolsonaro nas mortes de mais de 620 mil brasileiros pelo vírus.
Ovírus saiu de cena e o presidente ressuscitou os ataques contra os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Antes de seguir contando a história, vou dar uma explicação que considero importante para quem não é jornalista. Vou começar a usar as palavras “cachorro grande”, um jargão usado há muito tempo nas redações para descrever pessoas importantes. Voltando à conversa. No ano passado, no dia da Independência do Brasil, o presidente tentou dar um golpe de Estado – há matéria disponível na internet. Na ocasião, atacou o ministro do STF Alexandre de Moraes. O ataque contra o ministro rendeu mais manchetes de jornal do que a tentativa de golpe. Tanto que, quando sentiu que tinha pisado na bola, o presidente recuou e saiu de fininho, como se nada tivesse acontecido. Na quinta-feira, 21 de abril, Bolsonaro concedeu um indulto individual de graça ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), que na véspera havia sido condenado a uma pena de oito anos e nove meses de prisão em regime fechado pelos ministros do STF por ter praticado crimes contra a democracia. Essa história já circulou o mundo e atualmente é assídua frequentadora dos espaços nobres dos noticiários nacionais. O caso segue de vento em popa. No domingo, 1º de maio, na mobilização dos bolsonaristas pelo Dia do Trabalho, o principal astro foi justamente o deputado Daniel Silveira. A maioria dos jornalistas que trabalham nas redações dos jornais, blogs e outras plataformas de comunicação sabe que essas lambanças do presidente têm como objetivo ocupar o espaço na opinião pública, substituindo as grandes crises nacionais, como o preço da gasolina, do gás de cozinha, a inflação e a confusão administrativa na qual o país mergulhou graças à incompetência dos ministros do governo, como no caso dos “pastores do MEC” – há matérias na internet.
Temos como deixar Bolsonaro fora das manchetes dos noticiários? Não, porque ele é o presidente do Brasil e tudo que faz reflete na vida de todos os brasileiros. A imprensa dos Estados Unidos passou pela mesma saia justa quando o republicano Donald Trump era presidente e armou grandes lambanças por lá, incluindo uma tentativa de invasão do Capitólio, o congresso americano, para impedir a posse de Joe Biden, democrata, que o derrotou na sua tentativa de se reeleger. A questão é a seguinte: até quando as lambanças do presidente da República vão ocultar a realidade? Se algum jornalista tem a resposta para essa pergunta, ainda não escreveu. Devemos perguntar para as pessoas que não têm dinheiro para comprar um botijão de gás, comida para a família, gasolina para o carro e procuram emprego. Uma coisa é a realidade americana. Outra é a brasileira. Quem será o próximo cachorro grande que Bolsonaro escolherá para brigar?
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Carlos Wagner é jornalista e trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.