Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As muitas facetas do jornalismo em cobertura de guerra

A jornalista Paula Fontenelle, mestre em marketing político pela Universidade de Greenwich, em Londres, propõe em seu primeiro livro aprofundar a cobertura realizada por jornalistas na Guerra do Iraque, empreendida por norte-americanos e anglo-saxões contra as tropas de Saddam Hussein no ano de 2003. Sua intenção é compreender, a partir de uma análise diacrônica de guerras anteriores, de 22 entrevistas e de uma considerável pesquisa, como os correspondentes no Iraque cobriram este conflito que ela considera como o mais rico em imagens espetaculares de ação militar de todos os tempos.

Em um primeiro momento, a pesquisadora traça um paralelo entre boa parte das grandes coberturas de guerra da história para avaliar o grau de censura e propaganda militar presente nas mesmas. Segundo seu exame, não só em grandes combates houve abundância de restrição à imprensa por parte do corpo militar, mas também em conflitos menores. Porém, esta grande repreensão de gravação e exibição de conteúdos midiáticos, além de criar uma animosidade intensa entre jornalistas e soldados, gerou uma onda de profissionais interessados em buscar notícias negativas através de coberturas independentes.

Então, a partir da Guerra do Golfo, embora ainda se mantivesse grande controle sobre aquilo que seria noticiado, uma estratégia experimental começou a ser utilizada a fim de ‘trazer’ os jornalistas para o lado dos soldados: oferecer uma cobertura mais segura, equipada e com mais imagens de ação das tropas. Assim, os profissionais passariam a ter a possibilidade de acompanhar a artilharia em campos de batalha. A censura também havia sido reduzida, porém, dada a extrema burocracia militar pela qual as matérias jornalísticas passavam, poucas notícias eram veiculadas a tempo. Somente Peter Arnett, da CNN, permaneceu em Bagdá sem o apoio de tropas trabalhando como independente, e seu desempenho incomodou o exército que o acusou de fazer ‘jornalismo não-patriótico’.

‘Operação de mídia’

Após esse breve apanhado geral, a autora se debruça nos conflitos políticos que se desenrolaram até a chegada de soldados norte-americanos e ingleses ao Iraque em 2003. Nos Estados Unidos, o interesse em invadir o Iraque emergia no governo de George H. Bush desde a Guerra do Golfo. O engodo dos perigos que poderiam ser desencadeados caso Saddam Hussein conseguisse armas de destruição em massa seria o motivo para invadir aquele país, que, por sinal, também continha portentosos poços petrolíferos. Porém, somente em 2003, na administração de George W. Bush filho foi possível, enfim, dar início à guerra contra Saddam Hussein e suas ‘armas de destruição em massa’.

Bush ainda contou com o amparo da população norte-americana, que apoiava a luta contra o ‘terrorismo internacional’ desde o ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, em 2001, e com o primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair, que serviu como aliado principal para que os Estados Unidos infringissem a Resolução da ONU e atacassem as tropas de Saddam. Entretanto, no Reino Unido a população se posicionava contrária à guerra e o primeiro-ministro vivia um duro dilema, já que sua popularidade vinha despencando há meses. A pressão para apoiar os EUA na guerra era grande, pois Tony Blair já tinha tomado partido como aliado na repressão ao terrorismo.

Por fim, mesmo após uma enorme manifestação anti-guerra realizada nas ruas de Londres (que reuniu cerca de um milhão de pessoas) e alguns pedidos de demissão por parte de altos funcionários do governo britânico, o primeiro-ministro decidiu apoiar os EUA em sua empreitada, violando as Resoluções da ONU e de países como Rússia, França e Alemanha, que se posicionavam contra a batalha antes que se tivesse certeza da existência de armas nucleares em solo iraquiano (uma primeira inspeção feita em 2002, por Hans Blix, membro das Nações Unidas, não obteve resultados satisfatórios).

Dadas as peculiaridades relatadas referentes ao contexto histórico deste conflito em particular, Paula Fontenelle mergulha no modo como correspondentes estrangeiros operaram e qual foi o apoio (ou ausência de) de tropas aliadas e inimigas a jornalistas. Se nos Estados Unidos a preocupação era de manter a opinião pública apoiando o embate, na Grã-Bretanha era necessário trazer notícias positivas dos soldados a fim de alterar o modo como a população olhava a invasão do Iraque. Então, desencadeia-se a chamada ‘Operação de Mídia’, que ofereceria aos jornalistas o oposto da repressão sempre sofrida em cobertura de guerras. A ideia seria proporcionar segurança, informações estratégicas e tecnologia de ponta aos profissionais da imprensa escrita e televisionada, ao preço ‘mísero’ de estes se ‘engajarem’ para acompanhar as diversas unidades de infantaria do exército.

Tecnologia foi para o ralo

Se tudo soava como um mar de rosas neste casamento entre mídia e militares, a autora vem mostrar o oposto. Estando o tempo todo em conjunto com as tropas, os jornalistas passaram a ter uma visão extremamente restrita da invasão, e a convivência com combatentes dissolveu a linha tênue entre profissão e a amizade. Repórteres norte-americanos e britânicos que se ‘alistavam’ com as tropas, acompanhando-as dia-a-dia no avanço pelas terras iraquianas (e preocupados em obter ‘imagens de ação’ nunca antes conseguidas), acabavam só mostrando uma única faceta da guerra: aquela favorável aos militares. O material colhido por eles era, então, enviado para outra inovação inaugurada em 2003: a Unidade Móvel de Transmissão (UMT), um centro altamente equipado em matéria de mídia onde jornalistas, além de agir como editores empacotando o material recebido das zonas de embate, cobriam ao vivo, em conjunto a assessoria de imprensa, relações públicas e soldados de alta patente do exército britânico, o dia-a-dia da batalha, deslocando-se com a Primeira Divisão da armada.

Oficiais disponibilizavam aos repórteres materiais e informações nunca antes recebidas, chegando mesmo a partilhar segredos militares para que os jornalistas pudessem preparar suas notícias para os respectivos veículos de comunicação com antecedência. A cooperação, ainda que não fosse total, era ‘sincera’, e embora houvesse diversos embates ideológicos entre oficiais e jornalistas, no geral o sistema ‘funcionava muito bem’, como relatou o coronel Sean Tully, membro do Ministério da Defesa Britânico e responsável pela UMT. Já o contato com a população iraquiana era quase nulo, pois o exército se deslocava rapidamente e não era possível ficar muito tempo em um mesmo local.

Em Qatar, um Centro de Mídia equipado com tecnologia de ponta oferecia uma cobertura com imagens de alta qualidade para jornalistas norte-americanos e britânicos. Porém, atados neste Centro, os mesmos tinham poucas informações até sobre o avanço dos aliados, e esta dificuldade de comunicação era intensificada no contato com soldados dos EUA, que restringiam informações a fim de não divulgar algo que pudesse alterar a visão positiva que a população de seu país tinha da guerra. Como a própria Paula Fontenelle cita, toda a tecnologia ali empregada foi ‘jogada pelo ralo’.

Para além da retórica

Já outro grupo de repórteres, como Kim Sengupta do jornal The Independent, e Anton Antonowicz, do Daily Mirror, sofriam do mesmo problema de enquadramento monofônico do acontecimento, porém, engessados pelo regime iraquiano. Hospedados no Hotel Palestina, em Bagdá, os profissionais só saíam do lugar com liberação de oficiais iraquianos, eram vigiados por espiões que os acompanhavam muitas vezes disfarçados de motoristas e intérpretes e tinham acesso restrito à internet e redes de televisão. As visitas que faziam em companhia de soldados de alta patente do exército iraquiano só eram efetivadas quando os mesmos queriam mostrar a devastação feita pelos bombardeiros dos aliados a civis, instalações de saúde, educação e comércio. Ainda assim, essas ‘devastações’ anunciadas pelos iraquianos eram desconfiáveis e não havia qualquer certeza de que realmente tivessem sido realizadas por norte-americanos e anglo-saxões. As coletivas de imprensa com o governo eram escassas e realizadas em horários desconfortáveis, quando aconteciam.

Por último, a autora relata a participação dos chamados jornalistas ‘unilaterais’ na cobertura da Guerra do Iraque. Estes, que se opuseram ao engajamento formal e à hospedagem no Palestina, receberam altos investimentos de seus respectivos veículos de comunicação para cobrir a guerra sem restrições. Gastando o equivalente a dois mil dólares por semana, estes repórteres se aventuravam junto a intérpretes por diversas cidades iraquianas entrevistando até mesmo membros de grupos fundamentalistas, embora em determinados momentos (principalmente quando a segurança falava mais alto) acabassem por acompanhar as tropas aliadas.

Paula Fontenelle identifica algumas das linhas que formaram as redes (e os nós), na cobertura da Guerra do Iraque. O fato de se atentar ao contexto discursivo do evento e a uma análise diacrônica de coberturas anteriores revela que sua perspectiva procura não encontrar respostas única e exclusivamente na retórica de cada um dos jornalistas e militares entrevistados. Igualmente, a compreensão deste acontecimento não se propõe a ser maniqueísta nem criar trilhas bem definidas. A ambição da pesquisadora é tentar apreender um pouco das complexidades que permeiam o campo profissional do jornalismo, colaborando para uma construção de realidade com novas facetas. Ao final da obra, escolhidas a dedo, nove entrevistas extremamente ricas ajudam a compor a teia tecida pela pesquisadora em conjunto com diversas fotos em preto-e-branco de jornalistas e militares que cobriam a Guerra, bem como dos protestos realizados no Reino Unido em 2003.

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Estudante de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e bolsista de Iniciação Científica do CNPq, Mariana, MG