O modelo de televisão comercial no Brasil, presente desde as primeiras redes privadas que despontaram no ramo como a extinta TV Tupi e a própria Rede Globo de Televisão, seguem a presunção de cumprir as três funções básicas, em ordem decrescente: entreter, informar e educar (FIORETI, CAMPOS e STIVANIN, 2007). Ainda que existam no país propostas crescentes de abertura de emissoras públicas, as privadas continuam a ser majoritárias e o seu modelo, presente em boa parte do planeta. Porém, o que faz com que o entretenimento seja a máxima a ser atendida nestas redes em prol de uma suposta audiência, vem de um processo histórico de mudança estrutural daquilo que se compreende como esfera pública, e se dá desde os primórdios da própria imprensa, com casos notórios como na Inglaterra, onde, sob a dinastia dos Tudors, ‘a intervenção do governo já se fazia de forma mais dissimulada. Em vez de censurar, forjavam conteúdo. Notícias sobre a família real eram amplamente divulgadas e `plantadas´ nos periódicos de forma a influenciar a opinião pública a favor da monarquia’ (PENA, 2008, p.35).
Assim, ‘era comum encontrar textos sobre roupas da Corte, casamentos de nobres e outras amenidades que exerciam fascínio sobre a plebe e afastavam as discussões políticas. Por isso, o governo foi o principal agente do desenvolvimento da imprensa.’ (PENA, 2008, p.36). Dadas estas considerações históricas, se pode concluir que o modelo atual de televisão comercial é decorrente de um processo de criação de um arquétipo de interesse do público de outras épocas, e que se difere claramente do conceito de interesse público, na medida em que este ‘decorre da objetivação das circunstâncias em que se desenvolve a interação humana política e socialmente, abrangendo decisões e fatos que a afetam no sentido de que modificam ou podem modificar a convivência e hábitos de conduta, para confirmar ou pôr em causa idéias, crenças e atitudes’ (PONTE, 2005, p.201), enquanto aquele se refere a motivações humanas, que ‘mobilizam um interesse psicológico que se inquieta, estremece, comove ou alegra por conhecer certas ocorrências, dramáticas, peculiares, sociais ou surpreendentes, por muito que variem os gostos e preferências’ (LADEVÉZE apud PONTE, 2005, p.201).
Liberalismo e individualismo
Na medida em que o interesse do público se manifesta na televisão segundo um modelo que privilegia o entretenimento, temos que, ‘no palco contemporâneo, o espetáculo é a vida. Os ingressos na bilheteria dão direito a entrar na intimidade dos atores, formar alteridades e idealizar heróis’ (PENA, 2008, p.86). O espetáculo, como levanta Freud, aciona a supressão ao menos momentânea de algo recalcado, trazendo assim um alívio do imaginário das pulsões e dos instintos anti-sociais, fenômeno este que possui função catártica (AUCLAIR apud ANGRIMANI, 1995, p.31). E, a mídia terciária, entendida como aquela que abole os limites espaciais e físicos,
‘ofereceu os meios necessários para que a sociedade se transformasse numa sociedade de voyeurs, instalando o espetáculo em todas as instâncias comunicativas. Esse fenômeno da comunicação como consumo e produção de imagens espetaculares que se oferecem à prática voyeur partiu da vida social, das demandas da cultura industrial, mas acabou por se instalar, com a internet, também como a nova realidade da vida privada’ (CONTRERA, 2002, p.53).
É claro que não é o objetivo deste trabalho dizer que o entretenimento é em si o vilão do atual modelo de televisão, até porque sua presença é indispensável mesmo em moldes que se propõe a educar ou a informar majoritariamente. Quer em segundo plano ou terceiro, o entretenimento esta sempre presente, porém, nos padrões da sociedade de consumo, ‘a espetacularização da vida toma o lugar das atuais formas de entretenimento. Cada acontecimento em torno de um indivíduo é superdimensionado, transformado em capítulo e consumido como um filme’ (PENA, 2008, p.88).
A proposta de um novo modelo de televisão não vem em soluções técnicas, já que seus problemas, como aqui levantados, são conceituais, perpassando diversos momentos históricos onde interesse do público sobrepujava o interesse público. Segundo Ladevéze (apud PONTE, 2005, p.201), este último é independente, ainda que possa ser concorrente, da sensação psicológica. Sua compreensão exige esforço intelectual para entender princípios, processos e regras de distribuição do trabalho social, admitindo diversos níveis de apreensão por parte do sujeito interpretante, dependendo majoritariamente de sua capacidade de contextualizar a informação e de se compreender como membro de uma comunidade onde possa se integrar. Em suma, muito além de um tratamento focado no superficial e orientado por sensações, ou de um interesse público visto sob uma ótica elitista onde só se valoriza um estrito espaço público, estas instâncias devem se pautar em um ‘interesse comum da sociedade’, como levantado por Victoria Camps, para que também não tenhamos uma dicotomia entre interesse público e humano. A meta então é sensibilizar ‘toda sociedade em relação a determinados temas e situações que, ainda que de fato não nos afetem, deveriam afetar-nos e mobilizar-nos. Essa é a única `comunidade´ de interesses realmente necessária para combater o liberalismo e o individualismo extremos’ (apud PONTE, 2005, p.202).
Novos modelos
Como diz Cristina Ponte (2005, p.202), a prestação de atenção ao mundo e à sua diversidade através de um ‘contrato social’ com a audiência pode rechaçar o argumento que diz que se dá a sociedade ‘aquilo que ela pede’, o que não é mais que um abandono da responsabilidade social em nome de uma estrita lógica mercadológica, no sentido de que a estratégia de dar aquilo que é pedido é extremamente conveniente para que não se faça nada de reflexivo, focalizando somente na reprodução de fórmulas aprendidas no convívio cotidiano com a programação televisiva, o que gera a repetição de boa parte das lógicas mercadológicas apontadas. A televisão é um espaço de convívio humano, onde se reúnem grupos que assistem, discutem e interpretam em conjunto conteúdos que ajudam a construir sua realidade social. Então, por que não dar a estes conteúdos um tratamento reflexivo em vez de se debruçar somente em técnicas prontas?
Não há como indicar respostas nem apreender a totalidade daquilo que é veiculado em modelos comerciais de televisão, e ainda que sejam tecidas críticas, elas não devem estigmatizar aquilo que existe como ‘lixo’, propondo uma transformação utópica com reflexões duvidosas ou nulas. Este trabalho foi instigado pela idéia de problematizar, mas não indicar soluções mágicas e muito menos modelos técnicos esvaziados de substância teórica. Ainda que se fale em ‘interesse comum da sociedade’, não há neste conceito a panacéia para os problemas específicos de emissoras e redes particulares, mas sim uma proposta reflexiva geral que pode servir como ‘algo a mais’ a se pensar em uma possível proposta de novos modelos ou re-modelações das atuais emissoras de televisão privadas.
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Estudante de Comunicação Social, Ouro Preto (MG)