Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

E foto de mulher pelada – por que não?

O governo Lula quer fazer o chamado ‘vale cultura’. Um dinheiro a mais na bolsa das pessoas, especial para a compra de revistas, CDs, jornais etc. O governo ficou contente com o aquecimento do mercado via bolsas e, então, imagina que pode continuar nessa linha. Tentando obstruir essa linha de atuação que, enfim, por populismo ou não, dá êxitos ao governo, a oposição busca argumentos técnicos. Aparece em cena, então, a questão de se saber ‘o que é cultura’. Para se dar o ‘vale-cultura’, dizem os oposicionistas, nós devemos dizer ao governo (e talvez ao povo), o que é cultura. Um jornalista da Folha de S.Paulo, Gilberto Dimenstein, preocupadíssimo em saber se a revista Playboy vai ou não poder ser comprada pela ajuda governamental ao cidadão, lançou a frase ‘mulher pelada não é cultura’. Junto com isso, de subproduto, atacou também o que chamou de ‘gibis’ (ele não usou, parece que propositalmente, o nome HQ), que também não seriam cultura.

Não quero aqui entrar no mérito do tipo de política social que está em jogo, a que é empurrada pelo governo e que a oposição tenta barrar. O debate estritamente político, aqui, não me interessa (já me manifestei sobre a política de bolsa no Estadão e outros lugares). Acho que a filosofia pode ajudar mais, neste caso específico, se colaborar na questão de vermos como empregamos a palavra cultura e, então, sairmos do emaranhado técnico da dita falta de critérios para colocar na bolsa do ‘vale cultura’ esta ou aquela peça.

Quando percorremos nosso universo de expressões, percebemos que usamos a palavra cultura para várias atividades e objetos. Peneirando aqui e ali, não creio que possamos, para fins utilitários, ir além das quatro acepções de cultura que o professor Alfredo Bosi, num estudo dos anos setenta, elencou: cultura erudita, cultura acadêmica, cultura popular e cultura de massas. Exponho abaixo do que se trata, sem seguir à risca Bosi, e sim, traduzindo tudo para a minha perspectiva em relação a cada acepção.

Uma erva cabocla pode ganhar o mercado

A cultura erudita tem um forte acento nos produtos do espírito. Ela diz respeito aos clássicos da literatura, artes plásticas, música etc. Quem escuta Bach, quem lê Dante ou Thomas Morus, ou quem é capaz de apreciar Rembrandt ou o trabalho de um corpo de balé de grandes teatros nacionais usufruiu da cultura como cultura erudita. Por razões de nossas disparidades econômicas, essa cultura erudita é, às vezes, chamada de cultura de elite, ainda que vários membros de nossa elite econômica possam muito bem não saber nada disso – o que não seria de se estranhar.

Uma parte da cultura clássica, ao se agrupar à ciência e à técnica, forma a cultura acadêmica. Pode-se fazer uma boa universidade e aprender as Leis de Newton não como no colégio, mas por meio do cálculo superior, as derivadas e integrais, e ajustar a isso uma leitura de filósofos como Kant ou Voltaire. Pode-se articular esse aprendizado da física com técnicas computacionais e, então, para deslizar melhor nos aparelhos que se quer usar ou construir, ter o conhecimento bastante bom de línguas estrangeiras. Isso tudo, nas universidades públicas e algumas (raras) particulares, no Brasil, é o que estaria, em princípio, disposto para a classe média – e de fato esteve, ao menos até pouco tempo.

A cultura popular é a que é mais dependente do campo de articulação entre o espiritual e o material. É o lugar em que a acepção antropológica de cultura mais vem ao caso. Cultura, aqui, pode ser um apetrecho de trabalho ou de caça, mas pode ser também, por exemplo, a música sertaneja em suas ligações com a geografia e a história de cada um. Nesse caso, trejeitos e comportamentos corporais importam muito, e até fazem parte, mesmo, de aspecto substancial do que se entende por cultura – as danças chamadas folclóricas entram aqui como uma forma musicada da expressão corporal do andar, sentar e trabalhar. Cultura, nesse caso, lembra o cultuar, o que vale para o culto dos deuses e o cultivo da terra. Os vários aspectos da palavra cultura, sempre articulando de modo bem claro o que é o espiritual e o que é o material, ganham relevância no âmbito da cultura popular. É claro que essa cultura é a dita ‘do povo’. Ela pode ‘subir’ para a universidade em forma de objeto de estudos, o que não raro ocorre. E pode até mesmo se assentar neste âmbito. Por exemplo, uma língua nativa pode ser objeto de construção de um dicionário pela pesquisa universitária, e uma erva cabocla pode virar um remédio oficial em um departamento de farmacologia de uma universidade e, a partir daí, ganhar o mercado.

O produtor e o receptor

Ah, falamos no mercado. É aí que todos esses aspectos da cultura são modificados e aproveitados. Em uma sociedade de mercado – que é a nossa, e da qual não tenho interesse em sair –, tanto a cultura erudita quanto a acadêmica e a popular podem ser transformadas para o processo de mercadorização ou modificadas no processo de mercadorização em função do consumo de massa. Isso não significa, necessariamente, perda de qualidade. Todavia, o que é característico da cultura de massa, de modo relativamente independente do mercado, é que, enfim, quando posta para acolher os produtos das outras formas de cultura, de fato modifica em sentido mais simplificador.

É que a cultura de massas é feita para a apreciação simples, sem grandes exigências de disciplina e treinamento para a absorção. Assim, suas características são a do dualismo e a do maniqueísmo. Os ritmos são postos em esquema bipolares simples, as histórias são contadas como luta do bem contra o mal, as fórmulas mágicas se casam com fórmulas não mágicas sem as devidas mediações da arte da ficção. Neste caso, há aquilo que, em geral, formavam os produtos apresentados em programas de auditório, do Sílvio Santos ou do Chacrinha, e que hoje foram ampliados pelos reality shows ou por programas similares, como os do Faustão e Luciano Huck. Os livros, no caso, são os de auto-ajuda, espiritismo e, é claro, os de estilo Paulo Coelho e o próprio. A produção teatro, neste caso, nos dá as novelas populares. No âmbito do cinema, entram aí os filmes dramalhões simplificados ou, no caso mais específico, as séries policiais da TV.

Essas acepções de cultura que, enfim, norteiam a palavra cultura no modo que a utilizamos cotidianamente, nos ajudam a mapear a situação, e isso melhora a nossa análise. Mas não é tudo. O que é importante entender é que, no limite, o que faz com que exista o elemento diferencial, diz respeito à sofisticação do produtor e do receptor de todo esse aparato, de toda essa produção. Então, é aqui que podemos avaliar a frase de Gilberto Dimenstein: ‘Mulher pelada não é cultura’. É aqui que temos de ver se ele acertou ou não o alvo.

A fotografia, a história e a geografia

Será que ‘mulher pelada’ não é cultura? No caso específico, Dimenstein está se referindo à revista Playboy. Portanto, a frase já começa com um engodo: não de trata de ‘mulher pelada’, mas de foto de mulheres. Portanto, a intermediação do trabalho do homem, que é uma das bases para falarmos em cultura, já está posta. Bem, não temos nenhuma dúvida que falamos, então, de um produto. Trata-se de um produto de mercado que visa ao consumo de massa. Todavia, é exclusivamente isso?

Qualquer um com um curso simples de fotografia, com uma máquina fotográfica qualquer e com um guarda-roupa da sua própria casa pode se meter a fazer o trabalho? Basta saber apertar o botão da máquina fotográfica e ter uma moça bonita no seu próprio apartamento e então temos uma revista? Caso fosse assim, todo mundo teria a sua revista. Mas, mesmo com a democratização dos aparelhos técnicos ao extremo, a Playboy continua solitária no mercado.

As fotos da revista Playboy da ‘moça pelada’ não mostram qualquer moça. Nem é o caso de ser uma atriz. A moça escolhida é a mulher de destaque histórico e geográfico do momento. Nesse sentido, a revista marca a história do Brasil, o cotidiano da nação é apresentado, de maneira simbólica, por meio do corpo, no caso, o corpo da mulher. Por isso a Playboy aguça os olhares de todos, inclusive das mulheres ou, em certos momentos, mais ainda das mulheres. Há a necessidade de olharmos para o corpo da mulher e saber, naquele mês, quem somos nós, os brasileiros. Fazemos isso mensalmente e depois recuperamos as capas na internet e todos nós, independente de sexo, idade ou gosto, queremos saber ‘ah, como era a Christiane Torloni naquele tempo da novela X?’ A pergunta não é sobre se ela era bonita ou não. Sabemos que era. A pergunta é sobre nós: como éramos nós naqueles anos. Queremos espelhos. Espelho do mundo que nos dêem, então, pedaços de nós que ficaram nas roupas que usamos, imitando as novelas ‘daquele tempo’ ou o cabelo da Torloni ‘naquele tempo.’

Esse é um dado que põe a revista, sem que exista dúvida, como um elemento da cultura nacional. No caso, na relação com o indivíduo, trata-se, sim, de cultura popular. Mas, ao mesmo tempo, na relação com a sociedade, pode subir como objeto da cultura universitária. Mas tem mais: a revista depende de um cenário vivo e de um conjunto de fotógrafos e de toda uma equipe técnica que, não raro, é tão grande quanto a de um bom filme. Cada mulher é apresentada, então, no contexto em que faz sentido seu corpo, considerando a razão momentânea pela qual o convite para posar foi para ela, e não para outra. Neste caso, a história e a geografia precisam casar-se com a arte da fotografia. A arte da fotografia precisa de todo o aparato do teatro e este, por sua vez, de um olhar estético que já está – ou deve estar – no contexto de quem passa pela cultura erudita ou por algo próximo dela. Não se faz uma boa foto da revista Playboy com diretores e produtores com capacidade de olho estético pobre.

Uma frase chula

Este aspecto estético se relaciona com o indivíduo comprador em um sentido pedagógico. Dá ao comprador o parâmetro social brasileiro do que é o erótico e diz, também, o que é a arte da foto erótica. No mundo todo é assim, não temos fugido à regra. Aqui, então, não há como não dizer que, do ponto de vista de se ceder ou não o ‘vale-cultura’ para a compra desse tipo de revista, o voto tem de ser favorável. Aprende-se o belo assim. E não é verdade que ‘beleza não se põe na mesa’ ou que ‘beleza não se discute’. Beleza é o que mais discutimos. Aprendemos, entre outros lugares, mas também com a Playboy, a ir da beleza da mulher para a foto bela, e isso é uma boa razão para se colocar o objeto cultural chamado revista da Playboy no saco do ‘vale-cultura’.

É claro que cada número da Playboy é um número. Um pode ser melhor, o outro pior. Mas a idéia é que o chamado ‘ensaio fotográfico’ seja erótico – o erotismo fotográfico é uma arte contemporânea. Ele está, inclusive, no lugar de desafio posto pelo corte transversal que se impõe nas acepções de cultura, como as coloquei acima. Ele é o rio que arrasta das margens elementos das quatro acepções postas acima e, ao mesmo tempo, não faz suas águas caberem em nenhuma das comportas dessas quatro acepções de cultura.

Fica fácil perceber que a moça da revista Playboy, seja qual for, não tem que ser avaliada por uma frase chula como ‘mulher pelada não é cultura’. Essa é uma frase de quem tem pouco trânsito com a própria cultura. A fotografia da arte erótica, como tem sido exercida pela Playboy, é o grande desafio para o modo como classifiquei a cultura, nos parágrafos acima, e que, de maneira indireta, desafia também a classificação de Bosi, como ele a registrou na sua perspectiva, nos anos setenta.

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Filósofo