Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os desafios do espanhol no século 21

O que poderia ter sido uma plácida e monótona reunião de estudiosos do idioma espanhol, com 370 especialistas acadêmicos empenhados em explicar e sistematizar as inevitáveis mudanças no falar e no escrever, acabou se transformando, semana passada, num agitado palco de ideologização lingüística, animado por duas estrelas da esquerda – o escritor português José Saramago e o poeta nicaragüense Ernesto Cardenal – além de figuras mais discretas, como os argentinos Tomás Eloy Martínez e Ernesto Sábato e o mexicano Carlos Fuentes.

Todos estiveram reunidos no Tercero Congreso Internacional de la Lengua Española, em Rosario, Argentina, organizado pela Real Academia de la Lengua Española, o Instituto Cervantes (do governo espanhol), e as 21 academias correspondentes da língua, com o patrocínio de empresas privadas argentinas e espanholas.

Da pauta pomposamente intitulada ‘Identidad linguística y globalización’ constavam temas agradáveis, como, por exemplo, a criativa utilização do idioma em 21 países por 400 milhões de pessoas, a importância de conservar a diversidade da língua e uma visão de futuro sobre os rumos do espanhol (hoje a quarta língua mais falada no mundo) diante da temida e crescente globalização.

Conclusão maior do Congresso: o espanhol está pronto para se converter numa das mais importantes línguas do mundo por conta de suas qualidades como idioma aberto a influências, por abranger um imenso território e ter unidade dentro das diversidades regionais. Por tudo isso, disse o presidente do Instituto Cervantes, César Antonio Molina, ‘o século 21 será o século do espanhol’

Contudo, não foi bem essa a opinião geral de uma reunião paralela, um certo Congreso de LaS LenguaS (o ‘s’ maiúsculo representaria, diziam seus adeptos, a imposição do espanhol como fato irreversível), espécie de encontro alternativo ao outro, com a participação de povos indígenas, lingüistas, antropólogos e ONGs preocupados com o que consideram – a voz mais eloqüente a do nicaraguense Cardenal – o ‘avassalamento da colonização e do espanhol hegemônico’, desrespeitando o direito fundamental ao bilingüismo, com ênfase nas 500 línguas indígenas da região (só o México tem mais de 30 línguas nativas).

América mestiça

Embora os organizadores do congresso alternativo garantissem não estar contra o congresso oficial, na prática seus participantes usaram o evento como um palco de denúncias ruidosas contra a marginalização dos povos indígenas e, sobretudo, contra ‘a discriminação lingüística exercida pelos governos por aqueles que não falam espanhol’.

No final, depois que Saramago mostrou-se solidário com a causa mas não propriamente a favor de uma reunião paralela – e ademais agressiva – para discutir o tema, amenizaram o tom dos debates e fizeram um chamado às autoridades do idioma para que os governos reconheçam o direito ao bilingüismo, além de uma convivência mais estreita de seus idiomas com o espanhol.

O mexicano Carlos Fuentes, no discurso de abertura do Congresso, também fez uma intervenção sóbria, quase uma síntese das posições dos dois lados, ao ressaltar o aspecto de mestiçagem da língua, dizendo:

‘O castelhano nos comunica, nos recorda, nos rememora, nos obriga a transmitir os desafios que o isolamento sufocaria: é a língua franca da América indohispânica. Em sua língua maya ou quechua, o índio de hoje pode guardar a intimidade do seu ser e a coletividade de sua intimidade, mas necessitará a língua espanhola para combater a injustiça, humanizar as leis e compartir a esperança com o mundo mestiço e criollo. (…) Que a língua espanhola ocupe o segundo lugar entre as do Ocidente não é uma ameaça, mas uma benção: o espanhol oferece ao mundo globalizado o espelho de hospitalidades lingüísticas criativas, jamais excludentes; abarcadoras, nunca desdenhosas.’

Como um complemento às idéias de globalização lingüística de Fuentes, Tomás Eloy Martínez afirmou que ‘o espanhol está se defendendo bem, tanto vem influindo nas grandes cidades americanas como nas pequenas aldeias fronteiriças; através da porta de serviço estamos chegando ao salão principal’. (Dos 34 milhões de estrangeiros nos Estados Unidos, 12 milhões são mexicanos, segundo cálculos recentes do governo americano).

Língua sangrenta

De modo geral, tanto a imprensa mexicana como a espanhola cobriram os dois congressos resumindo debates e relatando conclusões. Na imprensa mexicana houve, porém, a exceção do jornalista cultural Humberto Musacchio, ácido e perceptivo crítico cultural, que em sua coluna das segundas-feiras ‘La República de las letras’, no diário Reforma, não perdoa ninguém, sobretudo os funcionários públicos do setor e o que ele considera, nessa classe burocrática, incompetência e favoritismos.

Ao analisar o Congresso da Língua Espanhola realizado em Rosario, Musacchio caiu com tudo em cima do evento e de seus organizadores:

‘Trata-se de um monstrengo de traços coloniais, invenção da Real Academia Espanhola, com instituições ‘correspondentes’ e pouco correspondidas que giram em torno de um léxico obscurantista, misógino e racista baseado numa concepção metropolitana do castelhano, a língua guerreira imposta a sangue e fogo pelos conquistadores. (…) Os países do subcontinente, mais além do entreguismo de muitos de seus governos, são nações soberanas onde os povos, mistura de sangue europeu, índio, africano e em menor medida asiático, participam na gestação de uma nova identidade e reivindicam a gestação de 500 línguas nativas, muitas delas vivas e em plena floração literária.’

Ao protesto indignado de Musacchio juntou-se outro, curioso e sintomático, de escritoras filiadas à Sociedade Argentina de Escritores, que entregaram ao Congresso um abaixo-assinado referindo-se, em tom irônico, à ausência notória de mulheres nos painéis:

‘Obrigado, senhores, pela impressionante participação feminina. Obrigado pela inclusão imediata das vozes indígenas do nosso continente. Obrigado pelo frescor juvenil e o entusiasmo maduro dos debates.’

Tinham lá suas razões as escritoras argentinas: dos 370 participantes, só onze eram mulheres. Outra escritora, Besaris Morgades, da Guiné, queixou-se dizendo que ‘aqui se esquece que na África também se fala espanhol’.

El Quijote mais barato

Como resultado mais prático e imediato, por assim dizer, o Congresso apresentou uma nova edição de El Quijote, de Miguel de Cervantes, que esgotou-se em 24 horas. Com tiragem de l milhão de exemplares, a nova edição, comemorativa do quarto centenário do clássico espanhol, será vendida no México, Espanha e Brasil a preços populares.

Outro lançamento previsto e não menos importante, mas que acabou sendo adiado por problemas técnicos de última hora, foi o Diccionario Panhispánico de Dudas de la Lengua Española, um portentoso trabalho de cinco anos, contendo 7 mil entradas, com o propósito de dar maior coesão e homogeneidade ao idioma falado e escrito na Espanha e no continente latino-americano. As dúvidas do título se referem a problemas de vocabulário, ortografia e sintaxe.

O livro deverá ser lançado em maio pela Real Academia, constituindo-se em outra demonstração contundente de como espanhóis e hispânicos se preocupam com a permanente defesa, atualização e difusão de seu idioma.

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Jornalista e escritor radicado no México