TELEVISÃO
As olimpíadas do absurdo
‘Depois da primeira prova do reality show Sobrevivi a um Desafio Japonês, um executivo de 44 anos teve um achaque e pediu para sair. ‘Sinto-me nauseado’, declarou. Pudera. Em exibição no canal pago People+Arts, a atração americana explora um gênero popular na TV japonesa: os ‘batsu games’, ou ‘jogos de punição’. A meta dessas gincanas é submeter os participantes ao ridículo – e a engenhosidade de seus produtores está a serviço do absurdo. A produção da rede ABC acompanha as agruras de dez americanos que viajam a Tóquio para competir num show de televisão fictício, o Majide. O programa é fajuto, mas seus elementos – do apresentador bufão (o comediante japonês Rome Kanda, que vive nos Estados Unidos) à plateia que faz uma batucada ensandecida – são legitimamente japoneses. É gravado no famoso estúdio Toho, que nos anos 50 foi cenário dos filmes do monstro Godzilla. Divididos em duas equipes, os Pinguins Amarelos e os Macacos Verdes, os participantes passam por uma bateria de provas. Numa delas, um sujeito tem de comer bolinhos de arroz em tabuleiros presos à cabeça de outros competidores. É preciso pegar um por um, com a boca, enquanto os colegas correm numa esteira, tentando evitar a queda num cocho de farinha. Em outra brincadeira, um participante faz o papel de guindaste humano: pendurado por um cabo de aço e usando braçadeiras em forma de alicate, tem de fisgar ursinhos de pelúcia em meio a bexigas.
Tanto quanto os videogames, os mangás ou os desenhos animados, os batsu games tornaram-se um item de exportação da cultura pop japonesa. Maior sucesso do gênero nos anos 80, Takeshi’s Castle – protagonizado pelo comediante Takeshi Kitano, que no Brasil ficou mais conhecido como ator e diretor de filmes cabeça como Hana-bi (1997) – ganhou versões em mais de vinte países. No Brasil, foi a matriz das Olimpíadas do Faustão, quadro do programa de Fausto Silva nos anos 90. O mesmo formato que deu ibope à Globo anos atrás agora é um dos carros-chefe do programa de Silvio Santos no SBT, que comprou seus direitos e o rebatizou com o título chocho de Gincana do Parque Aquático. E o Domingão do Faustão voltou a apostar em atrações semelhantes. O quadro De Cara no Muro se baseia num formato japonês que é uma versão humana (e, como sempre, ridícula) do videogame Tetris: ou o participante dá um jeito de se encaixar na fresta de uma parede que se move em sua direção, ou é jogado numa piscina.. As disputas do Faustolândia vêm da mesma fonte. E o Maratoma, mais uma bobagem que acaba de estrear no programa, tem origem americana, mas é assumidamente inspirado nas pirações japonesas.
Para os espectadores estrangeiros, essas sessões de tombos e trombadas podem ter um efeito escapista não muito diferente do que se obtém com o velho humor pastelão. Mas, para entender por que o Japão é tão fecundo na criação dessas atrações, é preciso ter em mente o modo peculiar como o castigo e a humilhação são encarados por lá. Num ensaio clássico sobre o país, O Crisântemo e a Espada, a antropóloga americana Ruth Benedict afirma que o Japão é regido por uma certa ‘cultura da vergonha’, na medida em que os valores coletivos são reafirmados pela punição pública dos indivíduos. Ruth buscava compreender o código de honra dos soldados japoneses na II Guerra Mundial (escreveu o livro nos anos 40 – e a distância, pois o conflito a impedia de visitar o front inimigo), mas seu achado também explica certo traço punitivo no humor japonês desde pelo menos o surgimento do kyogen, uma forma de teatro, há seis séculos. Os batsu games são a versão trash dessa tradição. Num programa insólito da TV japonesa, homens que fracassam ao pronunciar frases no estilo trava-línguas são atingidos por um porrete nas partes íntimas (o nome da gincana é sugestivo: Quebra-Nozes). Numa prova de Sobrevivi a um Desafio Japonês, os participantes aparecem vestidos de mosca e trazem no peito uma bexiga cheia de meleca verde, que, ao estourar, simula as tripas de um inseto esmagado. ‘Quando ligam a TV para ver maluquices como essas, os japoneses deixam de lado seu recato habitual e relaxam’, diz o americano Kent Weed, produtor executivo do reality show. No escracho, quem diria, a ‘cultura da vergonha’ perde toda a vergonha.’
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