Os jornais paulistas voltam a se ocupar das fortes chuvas e das enchentes que neste mês já fizeram quase duas dezenas de vítimas fatais. Novamente ocupam as primeiras páginas imagens fortes de cidadãos enfrentando a água imunda que cobre as ruas para tentar chegar ao trabalho ou voltar para suas casas.
Como sempre, os repórteres colhem depoimentos desalentados daqueles que são humilhados, dia sim, dia não, pelas circunstâncias da cidade onde tentam realizar seus sonhos. Como em todas as ocasiões anteriores, a imprensa faz o relato dos transtornos e dos danos, mas não consegue relacionar efeitos com causas.
A cobertura dos fatos é apenas parcial, pela impossibilidade de registrar todos os problemas que ocorrem na região metropolitana de uma cidade como São Paulo. Na Zona Leste da cidade, um bairro inteiro com mais de doze mil moradores permanece sob a lama há uma semana.
Nenhum jornal se dispôs a levantar a história daquela comunidade, construída numa região inabitável por meio de loteamentos clandestinos promovidos por um vereador.
Os limites
Os números das vítimas não são precisos, porque os agentes da defesa civil simplesmente não conseguem chegar a todos os lugares atingidos pelas enchentes. E a imprensa, como se sabe, é alimentada pelas planilhas das autoridades.
Além disso, falta sensibilidade aos jornalistas que contam o sofrimento da população. Mesmo retratada parcialmente, a situação deveria ser classificada como muito mais grave do que expressa a palavra ‘transtorno’, usada pela Folha de S.Paulo, por exemplo, na edição de quinta-feira (17/12).
Quem perde a casa, com todos os móveis e bens que custaram uma vida para conseguir, não pode estar sofrendo apenas ‘transtornos’.
Talvez faltem também palavras aos jornalistas. A cada nuvem escura que sobrevoa a cidade, repetem-se os jargões, como se a permanência do drama obstruísse a imaginação dos repórteres.
As chuvas que atingem as grandes cidades do Sudeste brasileiro expõem também os limites do jornalismo.
Sem explicações
Passadas duas semanas de tempestades intermitentes, os jornais seguem registrando recordes de índices pluviométricos. Quase todos os dias chove certa porcentagem acima do que supostamente deveria chover em tais ou quais períodos. E parece não existir ninguém capaz de relacionar efeitos a causas.
Dezenas de entrevistados citam as mudanças climáticas e autoridades empurram a culpa para o santo fundador da igreja católica. Urbanistas se referem à falta de planejamento das nossas cidades, mas nenhum jornal se dispôs a abrir o mapa e revelar os erros que ainda hoje estão agravando o problema.
Na terça-feira (15/12), a Rede Record de televisão transmitiu uma reportagem na qual três motoristas foram acompanhados em sua travessia da avenida Marginal do Tietê, num dia de chuva. Foram três horas de percurso, e o resumo da façanha revela claramente que o alargamento das pistas não irá solucionar o problema. Pelo contrário: especialistas já citados pela imprensa afirmam que as obras em andamento vão piorar o trânsito e espalhar a água contaminada do rio para novas vítimas que não têm sido afetadas pelas últimas inundações.
Os jornais não conseguiram ainda produzir um retrato por inteiro do problema, e fogem da hipótese de estar sendo construída às margens do Tietê uma verdadeira barragem longitudinal que pode dar mais espaço aos automóveis, mas tem grandes possibilidades de agravar o efeito das chuvas.
Ninguém mais contesta o equívoco da escolha feita décadas atrás, de estimular o transporte individual em detrimento do sistema coletivo. Mas hoje, quando não restam dúvidas quanto à necessidade de reverter essa escolha, é quase incompreensível que a imprensa siga fugindo da responsabilidade de questionar certas escolhas dos governantes.
Assim como na questão climática, esta é a geração que ainda pode evitar o caos urbano e entregar cidades melhores para as gerações seguintes.