Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O traço marcante da história recente do rádio



No último dia 29 de novembro, a Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão lançou o livro Memória da Radiodifusão Catarinense, projeto coordenado pelo assessor de imprensa da entidade, Marco Aurélio Gomes. O livro conta boa parte da história do rádio e da TV de Santa Catarina e também com alguns textos de acadêmicos que se dedicam ao estudo da área. Levou três anos para ser produzido, e foi publicado com uma editoração à altura deste esforço, graças ao patrocínio de grandes empresas, a maioria do setor público: Badesc, Celesc, Weg e BRDE. A obra será distribuída ao mercado e às bibliotecas do estado, de acordo com as informações do site da Acaert.


Tendo sido um dos autores acadêmicos convidados a participar da obra, fiquei frustrado ao receber a notícia de que meu texto, produzido especialmente (e gratuitamente) para o livro já em 2006, não havia aparecido na esperada edição. Como me explicou uma fonte que participou da produção, o texto teria sido vetado pela diretoria da entidade. Ah, bom. Então, ele vem disponibilizado, neste Observatório, para quem tiver interesse de conhecê-lo.


Quando comecei a trabalhar em jornalismo, na Rádio Continental de Porto Alegre, em 1975, o diretor da emissora forneceu uma orientação precisa: ‘Nossa rádio fala para o público jovem. Se soubermos que alguém de 60 anos está nos ouvindo, temos que mudar, estamos fazendo algo errado.’ A ousadia irreverente do publicitário Fernando Westphalen, ‘o judeu’, demorou a ser assimilada pelos profissionais estabelecidos no mercado – por isso ele preferia arregimentar sua equipe ainda nos bancos da Universidade. E conduziu a Continental, que transmitia em AM, nos 1120 Khz., a um enorme sucesso entre o público alvo. A Continental era mais do que uma fórmula, era o conceito de segmentação de audiência chegando ao Sul do Brasil. Levado às últimas consequências, transformou o rádio gaúcho de uma forma irreversível, arrancando o primeiro bocado do grande público, que a partir daí foi sendo fatiado para se voltar aos mais diferentes gostos, como ocorreu também em todas as outras capitais do país.


Tantos anos depois, continuo achando a Continental de Porto Alegre um modelo de especialização bem feita e raramente repetido: a emissora não se limitou a tocar bom rock e dar o microfone a deejays sintonizados com o público alvo, como fazia a Mundial do Rio de Janeiro, sua precursora no formato. Não descartou o bom jornalismo nem a cultura. Não cedeu à tentação de alargar o seu foco a um alvo mais disperso. Pelo contrário, incorporou e reenquadrou tudo: notícias, publicidade, programação musical, apresentação, animação, vinhetas, previsão do tempo; nada ia ao ar sem um toque original na forma e no conteúdo. Era tudo muito afinado, no tom e na visão de mundo. Vendia calças Lee e discutia os destinos do planeta, lançava artistas locais e zombava da caretice do regime militar, tudo embalado na maior ‘sonzeira’. Era assunto obrigatório na juventude de classe média, da adolescência à universidade. Hoje em dia, ficou diferente: rádio para público jovem parece ter que ser necessariamente burra, como se os jovens desprezassem a criatividade e estivessem fora do mundo. Empresários da mídia reclamam que os jovens não lêem os seus jornais, mas são as rádios, muitas dos mesmos donos, as primeiras que deseducam para a leitura.


Talvez sejam os efeitos tardios do processo de segmentação, agora já feita e reproduzida mecanicamente, o cálculo frio no lugar da ousadia. Todos os segmentos parecem já ter sido trilhados, enquadrados, sedimentados, os formatos copiados e recopiados até perder a cor. A segmentação já é uma velha senhora, criada nos anos 40 para atender as necessidades não exatamente do público, mas dos então nascentes barões da mídia. Se a empresa da família comprava a segunda, a terceira, virava dona de várias emissoras, o que fazer para não competir com si mesma? Foi a resposta a esta questão que esteve na origem da introdução do conceito de especialização no rádio do Brasil, quase simultaneamente aos Estados Unidos e à Europa, nesta última sob controle diferente, o monopólio estatal, mas com dilema parecido.


Foi, portanto, antes da TV, antes do transistor e antes da FM que começou a segmentação do rádio, embora a chegada de cada um destes novos atores tenha intensificado o processo a seguir. É esta antiguidade, só superada pela especialização das revistas, que torna a targetização do rádio um processo de vanguarda em relação à tendência que tomaria conta de todas as formas de mídia.


Luta heróica


A primeira experiência, ainda sem uma grande consciência do processo ou de si própria, foi a especialização geográfica: a rádio local. Impossibilitada de competir com o nível de produção das concorrentes dos grandes centros, que inicialmente imaginara imitar, encontrou o seu espaço na identificação com a paróquia, falando no seu sotaque e dos seus assuntos. Com isso encontrou um filão, conquistando o interesse do público do lugar e na esteira dele também o dos anunciantes.


A rádio local é um fenômeno imbatível em todo o mundo, daí o receio que os empresários do setor têm do sucesso das rádios comunitárias – e a perseguição implacável aos aventureiros piratas. Os proprietários das emissoras estabelecidas sabem que todo o seu poderio é pouco para neutralizar a concorrência que a brincadeira dos garotos pode vir a fazer, roubando ouvintes e faturamento. Basta para isso que saibam mirar num objetivo claro e diferenciado e alvejem um novo segmento. Com menos custos e mais criatividade, podem chegar onde as grandes emissoras não chegam, daí a sua competitividade.


Além da rádio local, a segmentação adotava outras formas ainda nos anos 1940, principalmente nos grandes centros, onde a concentração de propriedade dos meios de comunicação já aparecia. Em São Paulo, houve o caso das Organizações Byington, que controlava várias emissoras, e da família Machado de Carvalho, que transformou a Rádio Panamericana, futura Jovem Pan, na ‘rádio dos esportes’.


Porém, com a transferência em massa do estilo de programação da ‘Era de Ouro’ para a TV, e até os anos 1960, o modelo de especialização que prevaleceu em quase todo o Brasil dividia as emissoras de rádio existentes em dois grupos, para o gosto da elite e o gosto popular, segundo os modelos de ‘alta’ e ‘baixa estimulação’. A ‘alta estimulação’ preconizava uma rádio que falava mais alto, inclusive no tom, regulado no agudo para chegar melhor nos precários radinhos de pilha do povão. Tocava música brega, vinhetas estridentes, entronizava os comunicadores de carisma, colocava as ouvintes no ar pelo telefone e conquistava as multidões. A rádio de ‘baixa estimulação’ era para poucos: sussurrava, em tom grave, a apresentação de música de qualidade e de notícias sérias. Tinha menos audiência, porém mais prestígio: era chique e faturava mais.


Havia estes dois tipos, e o resto eram exceções, como a Rádio Relógio Federal do Rio de Janeiro, que martelava a hora oficial brasileira de minuto em minuto, intercalada por curiosas pílulas de cultura inútil, no estilo dos velhos almanaques de farmácia. Já existiam também as emissoras não-comerciais, as educativas e as universitárias, para públicos diferenciados, mas poucas com uma história gloriosa a registrar, a não ser o da heróica luta pela sobrevivência, tal a falta de recursos a que sempre foram condenadas.


24 horas


Embora despretensiosa, a Rádio Relógio foi precursora do modelo mais contemporâneo de programação, que substitui a grade de programas, com lógica herdada do mundo dos espetáculos, pelo fluxo contínuo, em que cada emissora se transforma num programa só, disponível permanentemente. No modelo anterior – ainda vigente em muitas rádios e dominante na TV aberta neste início de século – existem atrações para diversas faixas de público na mesma emissora, cada uma com hora marcada para começar e para terminar. No novo modelo, que tende a prevalecer no rádio e já domina a TV paga, cada emissora se especializa num único gênero de programa, e cobre com ele as 24 horas do dia.


O rádio de formato só começou a ser efetivamente introduzido no panorama brasileiro com a descoberta do público jovem, no início dos anos 1970, em experiências como a da Mundial do Rio e a Continental de Porto Alegre, ambas ainda em AM, que anteciparam a avalanche que a Rádio Cidade provocaria mais tarde no FM. Nos Estados Unidos, a associação das empresas de rádio já se dava conta do potencial econômico do público adolescente em finais dos anos 1940 – no mesmo momento em que se implantava a TV, e apontava este nicho de mercado como uma das saídas para enfrentar o novo meio.


O sucesso do modelo, bem maior do que o de outros insistentemente tentados, como o da rádio feminina, parece se dever a um traço psicológico da adolescência que tem tudo a ver com segmentação: a necessidade de se diferenciar, se segregar da família e se aglutinar numa outra tribo – a turma de amigos – com valores e preocupações comuns. O rádio jovem atende perfeitamente a esta necessidade, servindo de cortina sonora para separar o mundo dos pais do quarto dos adolescentes.


Certamente, isso não teria sido possível, com a mesma intensidade, se não tivesse surgido o transistor para viabilizar o rádio portátil, de baixo custo, permitindo a cada membro da família ter o seu próprio receptor. E a fórmula do ‘rádio jovem’ pode ter sido impulsionada também por outro traço cultural da sociedade contemporânea: a glamourização da juventude como modelo e como valor. Não são poucos os marmanjos e as balzaquianas que procuram retardar a entrada na meia idade, pelo menos na aparência e nos hábitos de diversão e consumo.


Apesar da maior parte dos formatos do rádio segmentado no Brasil ter inspiração em fórmulas já testadas nos Estados Unidos, poucas vingaram por aqui sem adaptação. Um exemplo é o formato ‘Top 40’, muito adotado há algumas décadas, mas que caiu em desuso pelo excesso de rigidez. Consistia em programar e repetir as 40 músicas mais vendidas na semana, através de uma fórmula matemática que dosava a frequência de repetição conforme a posição relativa no ranking de sucesso. Aqui, parece não ter resistido ao jabaculê da indústria do disco, que desenvolveu mecanismos menos convencionais de interferir na programação, como o de dar dinheiro e presentes aos radialistas que promoviam os seus produtos.


Um outro exemplo de formato que custou a ser aceito no Brasil e só funcionou quando virou outra coisa foi o da emissora all news. Nos Estados Unidos e na Europa, funciona com um clock rígido, em que um novo noticiário recomeça ao final do anterior, a cada 20 ou 30 minutos, com todas as sessões fixas. O modelo foi tentado pela Rádio Jornal do Brasil, nos anos 1980, e fracassou. Nos anos 90, a CBN viabilizou um all news à brasileira: a rádio que ‘toca notícia’ faz jornalismo o dia inteiro, mas intercala a ‘notícia dura’ com programas de entrevistas, debates, e altera a programação com frequência, sempre que algum fato importante justifica a sua interrupção para uma transmissão ao vivo. É o modelo brasileiro, adotado hoje por todas as grandes emissoras informativas do país. Como se os jornalistas brasileiros tivessem questionado: afinal, se tem 24 horas só para fazer jornalismo, porque restringir a programação a noticiários com matérias curtas?


Interesse comercial


Além dessa interpretação própria dos modelos alheios, o Brasil tem outras particularidades na implantação dos formatos segmentados de programação de rádio. Uma delas está nos seus efeitos, tanto culturais quanto políticos. Numa sociedade cindida como a nossa, a segmentação da mídia pode representar mais um muro reforçando o apartheid social. O abismo e a falta de identificação da elite com a maioria excluída, heranças vivas do nosso passado colonial e escravocrata, tendem a aumentar quando se procura falar isoladamente para uns e para outros. A pauta que orienta as emissoras jornalísticas se preocupa hoje quase que exclusivamente com os problemas da classe média e com os pontos de vista da classe dominante. Quando o assunto relativo a um bairro popular é abordado, geralmente o é enquanto vizinhança indesejável dos mais ricos.


Por outro lado, nas rádios voltadas ao público de baixa renda, o acesso à inteligência é geralmente negado. Os grandes problemas da audiência não são enfrentados: ou são tangenciados pela dissimulação, ou sublimados pelo paternalismo dos comunicadores, que assim se tornam potenciais ocupantes de cargos políticos. A manipulação corre solta, até porque é de mau gosto, e quem poderia denunciá-la prefere não ouvir: está sintonizado em outra zona do dial. Sensacionalismo, violência, drama, berreiro, e a audiência se mantém altamente estimulada, desinformada e distraída. Quem pensou um dia em ‘dividir para governar’, provavelmente sonhou com a segmentação da mídia.


Não precisava ser desse jeito. A segmentação poderia ser o melhor caminho para interessar os jovens pelo que se passa no mundo, como mostra o exemplo da Rádio Continental de Porto Alegre. Ou para levar informação, cultura e cidadania aos menos favorecidos, como já provaram tantas experiências de rádios comunitárias, rurais e educativas, algumas até comerciais, por este mundão afora. Mas se a segmentação é tão mal utilizada como o é no Brasil, e com os efeitos perversos que se está vendo aqui, é porque está inserida numa sociedade que também está doente. Basta ver a força do crime organizado entre nós.


Também nem sempre será da mesma maneira. Quem, há algumas décadas, imaginaria o peso que as emissoras religiosas assumiriam no nosso panorama radiofônico, no início do século 21, quando todo o mundo parecia caminhar para o ateísmo? Certamente, o formato religioso é o fenômeno mais interessante do processo de segmentação, quando o rádio ultrapassa os 80 anos de idade no Brasil. E um dos menos estudados e compreendidos. Os religiosos estão explorando, na virada do milênio, o potencial mobilizador do rádio que os políticos exploraram sessenta anos antes. Chegarão aos mesmos resultados?


Quem viver, verá. A futurologia é um exercício ingrato, e quando o rádio brasileiro completar cem anos o panorama pode ter se modificado outra vez, por caminhos difíceis de se prever agora. As novas tecnologias abrem possibilidades inteiramente novas para a segmentação do rádio, que pode se intensificar no rumo da customização, em que cada consumidor terá sua própria emissora para ouvir (como a internet já faz, só que com rádios ainda de brincadeirinha). Resta saber se os ouvintes vão querer isso, e se haverá interesse comercial ou político para viabilizar o desenvolvimento do meio nesta direção.

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Jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, autor de O Conhecimento do Jornalismo (Florianópolis, EdUFSC, 1992) e O Rádio na Era da Informação (Florianópolis, Insular, 2001); coordenou as coletâneas Rádio e Pânico, a Guerra dos Mundos 60 anos depois (Florianópolis, Insular, 1998) e Teorias do Rádio: textos e contextos (Florianópolis, Insular, 2005)