Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O assunto inassuntável

[Para Ivan Marsiglia]

Lá se vão duas semanas desde que César Benjamin, articulista da Folha de S.Paulo, publicou o que talvez tenha sido o artigo mais bombástico e mais bombardeado do ano: ‘Os filhos do Brasil’. Foi numa sexta-feira, dia 27 de novembro. Página inteira. O pretexto (o ‘gancho’) parecia ser o pré-lançamento da cinebiografia do presidente da República, dirigida por Fábio Barreto, que só entra em circuito comercial no ano que vem, mas o artigo passou longe da crítica cinematográfica. Foi como se o texto negasse o pretexto. Declarando não estar interessado em ver a fita, que, segundo ele, ‘exala o mau cheiro das mistificações’, o articulista procura demonstrar que a figura melodramatizada de Lula, na tela da ficção (que ele não viu), não corresponde à pessoa real, de carne, osso e índole do presidente.

O artigo se processa em dois tempos distintos. No primeiro, narra o terror psicológico que o autor sofreu ao ser encarcerado, com 17 anos de idade, em 1971. No segundo, lança uma acusação atordoante contra o presidente da República. No primeiro tempo, revela que, em 1971, o articulista foi aterrorizado pelos carcereiros com a ameaça de atirá-lo aos presos comuns, que o castigariam com uma curra. No segundo, conta que, em 1994, num almoço marcado por informalidade excessiva, Lula teria lembrado o mês que ele próprio passou na cadeia, em 1980, e teria comentado que tentou subjugar sexualmente outro prisioneiro. Detalhe: Benjamin não oferece prova alguma do que afirma. Apenas lista outras pessoas que estariam presentes no mesmo almoço.

A reação do público foi rápida e sanguínea. Poucas vezes um artigo de jornal angariou antipatia com tanto volume e tanta velocidade. Centenas de leitores escreveram para a Folha, a maioria com muita raiva – e a muitos com razão, como veremos. Além disso, o articulista e a Folha receberam críticas duras de jornalistas de grande respeitabilidade. Cito apenas dois. Aqui, neste Observatório, Alberto Dines apontou traços de ‘imprensa marrom’ e o ombudsman da Folha, Carlos Eduardo Lins da Silva, argumentou que uma acusação tão séria só poderia ocupar espaço na página do jornal se viesse acompanhada da apuração dos fatos pela reportagem [trechos dos dois serão reproduzidos logo adiante]. No mais, como sempre acontece, as águas dos protestos rolaram e a vida seguiu indiferente.

Peço licença para voltar à questão. Bem sei que o assunto foi visto e revisto pelos ângulos mais diversos; sei também que, na opinião de muitos, já cansou. Mesmo assim, insisto. O tema guarda fantasmas e feridas que escaparam às abordagens mais impetuosas. São tópicos de difícil tradução. Na falta de palavra melhor, eu diria que esse assunto contém aspectos, por assim dizer, ‘inassuntáveis’. Que são os mais ricos. Vamos então mexer no que de fato machuca.

Socos e cotoveladas

Antes de tudo, vale retomar as passagens mais fortes do texto da Folha. É preciso deixar claro que se trata de um relato literário, muito bem construído, com uma história que emociona de verdade. Eis aí um ponto que praticamente não foi notado. A dramaticidade factual dos parágrafos enxutos é de uma densidade rara nas memorialísticas dos presos políticos brasileiros. É uma peça de valor estético. Um adolescente é posto nu dentro de uma cela minúscula, onde passa as noites de pé para espantar o frio. Come com as mãos. De repente, é transferido para uma cela de presos comuns. Os carcereiros o aterrorizam com a possibilidade de uma curra iminente.

Recorro às palavras do narrador:

‘Conduziram-me por dois corredores e colocaram-me em uma cela maior onde estavam três criminosos comuns, Caveirinha, Português e Nelson, incentivados ali mesmo a me usar como bem entendessem.’

Por sorte, ou por algum instinto natural de dignidade humana, ele foi bem tratado. O articulista observa:

‘Os três, porém, foram gentis e solidários comigo.’

Mais adiante, a narrativa dá um salto temporal. Estamos agora em 1994, na cidade de São Paulo. César Benjamin trabalha no estúdio que fazia as gravações da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva. De memória, ele reproduz um comentário que o candidato petista teria pronunciado durante um almoço na produtora. Com termos chulos, Lula teria rememorado a privação de natureza, por assim dizer, erótica, que lhe teria sido imposta durante o mês que passou encarcerado, em 1980. César Benjamin, então, transcreve o que a conversa:

‘– Você esteve preso, não é Cesinha?

– Estive.

– Quanto tempo?

– Alguns anos… – desconversei (raramente falo nesse assunto).

Lula continuou:

– Eu não aguentaria. Não vivo sem b… [a Folha publica o palavrão na íntegra].

Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência como havia tentado subjugar outro preso nos 30 dias em que ficara detido. Chamava-o de `menino do MEP´, em referência a uma organização de esquerda que já deixou de existir. Ficara surpreso com a resistência do `menino´, que frustrara a investida com cotoveladas e socos.’

Fechemos as aspas.

Entendimento difamatório

À parte os méritos literários, não há dúvida: o articulista imputa ao presidente da República a ‘confissão’ espontânea de um dia ter assediado sexualmente, com uso de força física, um companheiro de cela.

Se as palavras a ele atribuídas são obscenas, o gesto que elas descrevem é por demais abjeto para vir a público assim, sem mais. Em sua coluna dominical (29 de novembro), o ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva demarcou:

‘Concordo inteiramente com o leitor Carlos Alberto Bárbaro, para quem `não há outra opção ao jornal que publica artigo tão impactante quanto o de César Benjamin que a de, com suas equipes, tentar reconstituir os fatos narrados pelo autor´. Segundo, a de que é indispensável oferecer ao outro lado espaço e destaque similares para defender pontos de vista opostos aos do artigo de sexta-feira. O ideal seria a apuração factual dos eventos relatados e os argumentos contraditórios saírem com o artigo. O resultado da apuração começou a ser editado ontem. Que se complete e se publique o contraponto o mais rápido possível.’

Neste Observatório, Alberto Dines foi mais contundente (‘Lixo em estado puro’, de 30 de novembro):

‘A propósito da estréia do filme Lula, o filho do Brasil, a Folha publicou um depoimento do seu colunista Cesar Benjamin, dissidente do PT, a propósito de um comentário cabeludo feito há 15 anos pelo então candidato à presidência Lula da Silva (FSP, 27/11, pág. A-8).

Como foi constatado no dia seguinte [durante os dias subsequentes, o jornal procurou checar as afirmações de César Benjamin, como veremos a seguir], o comentário foi efetivamente feito, mas em tom de troça, conversa de fim de expediente. A Folha rasgou e tripudiou sobre todos os seus manuais de redação, pisoteou 20 anos de trabalho dos seus ouvidores ao aceitar como verdadeira uma fofoca estapafúrdia sem qualquer diligência sobre a sua veracidade.

Não foi desatenção, erro involuntário, tropeço de um redator apressado: a Folha reservou uma página inteira para que o colunista contasse a sua saga nos cárceres da ditadura iniciada quando contava apenas 17 anos. Seu relato é impressionante, mas de repente, para desqualificar os 30 dias em que Lula passou no xadrez, Cesar Benjamin conta a sua anedota em três enormes parágrafos e com ela fecha o artigo.

À primeira vista, parece mais um golpe publicitário da família Barreto (que produziu o filme), em seguida percebe-se que a denúncia é a vera, fruto de um ressentimento pessoal que um jornal do porte da Folha, que se assume ‘a serviço do Brasil’, não tem o direito de perfilhar.

A direção da Folha simplesmente não avaliou o tamanho do desatino. No dia seguinte, tentou consertar: mancheteou uma de suas páginas com o justo desabafo de Lula classificando o texto como ‘loucura’ (FSP, 28/11, pág. A-10). No domingo, certamente arrependida, a direção da Folha providenciou a evaporação do assunto. Ficou apenas a reprovação do seu ouvidor Carlos Eduardo Lins da Silva.

Tarde demais. Já no sábado (28/11) o Estado de S.Paulo repercutia o episódio com destaque e, no mesmo dia, a Veja já o incorporara à sua edição. O Globo manteve-se à distância desta porcaria.

Se o leitor não sabe o que significa `imprensa marrom´, tem agora a oportunidade de confrontar-se com este exemplo – em estado puro – do jornalismo de escândalos e achaques.’

A apuração posterior da Folha, de fato, colheu evasivas de alguns dos presentes àquele almoço de 1994, mas terminou por delinear que, sim, Lula disse algo naquele sentido. Mas em tom jocoso. Nada permite concluir que ele estivesse falando sério. Há poucos dias, Contardo Calligaris, colunista do jornal, no dia 10 de dezembro, corroborou essa interpretação:

‘Quanto ao que foi dito nesse almoço, Silvio Tendler, publicitário, que estava presente, parece confirmar a letra, mas não o espírito da conversa: `Aquilo foi uma brincadeira, uma piada que ele [Benjamin] tenta transformar em drama´. (…) Posso facilmente imaginar que Lula, em 1994, tenha inventado a história do `menino do MEP´ só porque ela parecia cair bem na conversa, porque era um jeito fácil de cimentar uma cumplicidade entre `homens´.’

Tem mais. Nenhum dos companheiros de cela de Lula confirma a agressão. O próprio ‘menino do MEP’, depois localizado pela reportagem (seu nome é João Batista dos Santos), recusou-se a comentar o acontecido. Ainda que ele não forneça uma versão conclusiva, nada, em seu depoimento (publicado pelo jornal no dia primeiro de dezembro) autoriza supor que seja verdadeira a hipótese de que Lula tivesse tentado assediá-lo:

‘O eletricista João Batista dos Santos, ex-militante do MEP (Movimento pela Emancipação do Proletariado) e um dos homens que estiveram presos com o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva em 1980, durante a ditadura militar (1964-1985), chamou de `um horror´ o artigo do colunista César Benjamin. (…) `Não tenho nada para comentar sobre o assunto´.

(…)

Santos recebeu a reportagem da Folha no final da noite de domingo em sua casa, em Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo, onde vive há cerca de um ano e dez meses com a mulher e dois de seus oito filhos. Ele não permitiu que a entrevista fosse gravada nem aceitou ser fotografado. A reportagem chegou à cidade no sábado e tentava ouvi-lo desde então. No início da madrugada de domingo, Santos fez o primeiro contato, por e-mail. Na mensagem, disse que havia outros `companheiros do MEP´ naquela cela do Dops e, portanto, não entendia o motivo de o jornal procurá-lo.

Santos escreveu ainda no e-mail que não tinha nada a dizer sobre o episódio narrado por Benjamin e que estava `convertido em uma religião que não me permite mentir´. Finalizou o texto dizendo que ficou `muito emocionado´ com os relatos de Benjamin sobre o tempo em que ficou preso na ditadura, `sendo que aqueles mais ferozes da prisão foram amigáveis para com ele´.

(…)

Na entrevista à Folha, que durou cerca de 40 minutos, Santos, 60 anos, mudou a versão e afirmou que era o único integrante do MEP entre os homens presos na cela do Dops em que também estava Lula. Disse que continua filiado ao PT, mas abandonou a militância após se mudar para o litoral. Santos disse que soube do artigo de Benjamin no dia seguinte à sua publicação, quando passou a receber telefonemas de jornalistas e antigos companheiros. Segundo ele, a situação foi `constrangedora´.

(…)

A mulher de Santos, Márcia Cristina Muniz, disse que, quando o marido falou de Lula, `foi sempre de maneira positiva´, e que nunca tinha ouvido relatos sobre uma possível tentativa de abuso na prisão. Criticou ainda o artigo, que chamou de `baixaria´, e disse temer que os filhos, em idade escolar, possam ser vítimas de chacotas por parte dos colegas.’

Desse modo, a sequência de reportagens da Folha atesta que a afirmação de César Benjamin se sustenta num ponto: sim, parece que Lula teria mesmo feito um comentário mais ou menos na linha que ele registra. No ponto fundamental, porém, ela carece de comprovação. Não há elementos que evidenciem tentativa de subjugar o ‘menino do MEP’. Nesse sentido, a história que ele contou dá margem a um entendimento difamatório e não deveria ter sido publicada sem maiores cuidados. Lembremos, por fim, que nenhum dos companheiros de cela de Lula, ouvidos pelos repórteres do jornal, confirmaram a acusação.

O fórum ideal

Existe, no entanto, uma sutileza que passou em branco e precisa ser levada em conta. O que agrediu terrivelmente o ex-preso político César Benjamin foi apenas e tão-somente o comentário truculento de Lula, mesmo que ele não se refira a um fato real. Aí temos uma primeira ferida, uma ferida terrível, que praticamente não se prestou a maiores reflexões.

Para alguém que, jogado numa cela de presos comuns aos 17 anos de idade, sob a ameaça de estupro, a simples piada, tal como foi feita, já consubstancia uma violência indizível. O golpe que ele sofreu foi esse, não outro. O autor da ‘piada’ era o seu candidato a presidente, e deve ter sido horrível escutá-la a sangue frio. Esse é o dado cultural que fere – e, quanto a ele, os críticos silenciaram.

O próprio César Benjamin alerta: o seu artigo se situa ‘além da política’, argumento que retomou num texto posterior, do dia 2 de dezembro:

‘Reitero: o que escrevi está além da política. Recuso-me a pensar o nosso país enquadrado pela lógica da disputa eleitoral entre PT e PSDB. Mas, se quiserem privilegiar uma leitura política, que também é legítima, vejam o texto como um alerta contra a banalização do culto à personalidade com os instrumentos de poder da República. O imaginário nacional não pode ser sequestrado por ninguém, muito menos por um governante.

Alguns amigos disseram-me que, com o artigo, cometi um ato de imolação. Se isso for verdadeiro, terá sido por uma boa causa.’

Aqui, no entanto, abre-se uma nova contradição. De um lado, é legítimo que César Benjamin queira pôr o episódio em debate. De outro lado, se, como ele mesmo diz, trata-se de um episódio ‘além da política’, isso significa que ele deveria estar também além da pauta do jornalismo político. Portanto, seria inadequada a sua publicação num caderno dedicado à política. Qual o fórum ideal para esse tipo de discussão? Difícil saber. De todo modo, ao pautá-lo em sua página de Política, a Folha se expôs ao desgaste das críticas que recebeu.

Preconceito funcional

Há outros aspectos a se considerar. É notório que o tratamento que Lula tem merecido na imprensa – sobretudo em assuntos da esfera íntima – é bastante distinto daquele que, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso recebe. O líder tucano não tem a sua privacidade devassada do mesmo modo. Trata-se de um dado intrigante.

Alguns atribuem essa diferença de tratamento à origem de ambos: um é operário e o outro é um intelectual. A meu juízo, não creio que a explicação passe por aí. É verdade que existe, em certas áreas do jornalismo, uma reverência excessiva diante dos acadêmicos ou eruditos, uma reverência que beira um complexo de inferioridade. Mas esse traço é minoritário e nem de longe esclarece a razão da sem-cerimônia com que Lula muitas vezes é exposto.

A verdade é que, sem prejuízo de eventuais tietagens que os cadernos culturais dedicam a ‘pensadores’, o mais comum no nosso jornalismo é um desvio oposto, que beira o antiintelectualismo. Pode-se dizer mais: com freqüência se manifesta um preconceito contra os intelectuais, como se esses passassem sua vida útil dedicados a encontrar problemas onde o discurso da eficiência gostaria apenas de ver soluções. O saldo dessa postura é uma insinuação reiterada de que intelectuais não são ‘práticos’, complicam tudo, perdem tempo com filigranas. Essa mentalidade, por sinal, não se restringe aos adeptos do jornalismo ultra-racionalista, avesso a sutilezas e contradições. Ele é comum também ao pragmatismo dos políticos e, também, aos empresários, que costumam cultuar o mito da competência técnica. Intelectuais, em suma, não rendem. Intelectuais são inúteis. Não custa lembrar que também nas hostes da esquerda, quando alçadas ao poder político, a mesma má vontade ganhou corpo.

Em poucas palavras, não se pode dizer que FHC seja tratado com mais salamaleque só porque seja um intelectual. O que talvez o distinga é o fato de ele ser um intelectual que já desfrutava do apelido de ‘príncipe’ e, mais que isso, um caso de intelectual bem-sucedido na política. Em suma, é como político já consagrado que o ex-presidente vem merecendo, digamos assim, o ‘tratamento vip’ quando o comparamos com o tratamento dado a Lula.

O preconceito que se pode ver, nesse caso, é antes um preconceito de classe que um preconceito – na falta de palavra melhor – funcional. Lula é um operário que se expressa por meio de palavrões e, se é assim, ele mesmo já não se daria o respeito. Portanto, ele faria por merecer o desrespeito.

Esse dado, como já foi dito, é bem intrigante. E não tem sido suficientemente esclarecido.

Cultura sem grandeza

Para encerrar, apenas uma nota sobre a síndrome de perseguir o mensageiro.

Não recuso os senões levantados a respeito da publicação do artigo de César Benjamin. Mais ainda, penso que é bom que o assunto seja amplamente debatido. Mas isso não quer dizer que tudo se resuma a um erro ou um acerto do editor. Há muito mais que isso em pauta. Se o artigo não tivesse saído na Folha, mas num blog pessoal ou em outro site qualquer, o assunto seria menos grave? Os pontos que ele suscita não mereceriam atenção de ninguém? Creio que não.

Além de discutir os critérios editoriais deste ou daquele diário, deveríamos ser capazes de ir além (além da política?; além do jornalismo político?) e discutir também o que seu autor procurou enfocar. Desautorizar o mensageiro não resolve o incômodo. Não cura a ferida. A nossa cultura política foi posta em questão: o machismo, o baixo calão, a superficialidade apressada, a grosseria. E, quanto a isso, nada ou quase nada se falou.

É o caso de perguntar: para onde vai uma cultura política que não tem a grandeza de encarar suas misérias e se refugia na síndrome de perseguir o mensageiro?

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Jornalista, professor da ECA-USP