Lembro-me que durante as primeiras eleições diretas e livres no Brasil uma dúvida que pairava entre os repórteres nas redações era se quem ganhasse realmente assumiria o poder. Ainda estavam vivas entre os jornalistas as memórias dos horrores que tinham sido os anos da ditadura militar (1964 a 1985). Aos poucos, nos anos seguintes, esse medo foi desaparecendo e as eleições passaram se enquadrar nos noticiários como um evento normal da vida do país. A ideia de um eleito não tomar posse por interferência dos militares sequer era cogitada entre os repórteres, mesmo nas mesas dos botecos onde os colegas da antiga ajudavam a empilhar garrafas vazias.
Em 2019, quando assumiu o seu mandato como presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), empunhando a bandeira do saudosismo dos valores de 1964, parecia um dinossauro que tinha voltado à vida, como no filme Jurassic Park (1993), do diretor Steven Spielberg. Os jovens repórteres que hoje são a maioria nas redações precisaram fazer cursinhos rápidos de história para entender o que Bolsonaro estava falando. Já os velhos repórteres da minha geração não conseguiam acreditar no que estavam vendo. Essa tem sido a explicação que tenho dado para colegas estrangeiros que me perguntam sobre a imprensa do Brasil.
Tenho escrito e dito que, de uma maneira geral, os jovens repórteres estão se saindo bem na cobertura da disputa eleitoral que se avizinha no Brasil. Em outros tempos, os colegas americanos e europeus chamariam de exótico o que está acontecendo aqui. Hoje isso não ocorre porque os Estados Unidos passaram pela experiência da administração do ex-presidente Donald Trump, republicano (2017 a 2021), o homem que ressuscitou e atualizou a máquina de propaganda política usada pelos nazistas nos anos 30 – há matéria na internet. E os europeus estão convivendo com o renascimento forte do nazismo e do fascismo e assistem online às atrocidades dos ataques das tropas russas à Ucrânia. O que está acontecendo é que, por algum motivo que ainda não descobrimos, estão sob ataque de grupos organizados os avanços tecnológicos, como as vacinas, os sociais, como o respeito às opções de vida das pessoas, e outros.
O interesse dos jornalistas estrangeiros pelas eleições brasileiras se deve ao fato do país ser uma peça importante nesse tabuleiro. Não por ser um dos principais produtores de alimentos do mundo ou ter um território continental. Mas porque aqui se cristalizou ao redor do presidente Bolsonaro um grupo que luta contra esses avanços, composto por generais e outros militares de várias patentes, empresários, um contingente respeitável de apoiadores populares e uma poderosa e azeitada máquina de propaganda política. Esse grupo tornou a candidatura à reeleição do presidente competitiva.
Tenho dito para os colegas estrangeiros que acredito que a liberdade de imprensa e a Justiça Eleitoral vão manter a disputa dentro da lei. Digo isso por duas razões: a primeira é que aprendemos nesses anos de mandato de Bolsonaro que ele avança nas suas ameaças às instituições até um limite e depois recua. Foi assim na tentativa de golpe do Dia da Independência – há matérias na internet. E a segunda razão é que Bolsonaro não estará mais falando sozinho, como nos dias atuais. Ele estará envolvido em uma disputa eleitoral e os seus adversários ficarão atentos ao que está acontecendo.
Em especial o seu principal adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP). Lendo o que temos publicado, salta aos olhos o fato de acreditarmos que, em caso de derrota, os bolsonaristas tentarão repetir aqui o que os seguidores de Trump fizeram nos Estados Unidos, que foi invadir o Capitólio, o congresso americano. Eu já acreditei nisso. Hoje tenho dúvidas porque o apoio da população ao processo eleitoral brasileiro é muito grande. Portanto, se tentarem alguma coisa semelhante, correm o risco de ficarem isolados. E também porque a situação econômica do país é uma das piores dos últimos tempos. Os preços dos combustíveis, como gasolina, óleo diesel e gás de cozinha, estão nas alturas. E a inflação e o desemprego são enormes. Aqui é o seguinte. O dia mais importante na história do Brasil poderá ser o seguinte ao segundo turno das eleições, se houver, é claro. Pode ser um dia muito complicado, parecido com as manifestações de 2013, quando milhares de pessoas foram para as ruas protestar contra tudo. Ou pode ser mais um dia normal na vida do Brasil. Ninguém pode prever. Foi o que respondi à pergunta feita por colegas do Paraguai.
Não vai ser uma tarefa fácil para os repórteres dos noticiários diários fazerem a cobertura do antes, do durante e do depois das eleições. Tem muita casca de banana solta por aí à espera do pé de um repórter. Soma-se o fato de que as redações estão desestruturadas, com poucos jornalistas, com muitas pautas e um dos salários mais baixos da história. Os repórteres têm ao seu favor as novas tecnologias, que se bem manuseadas podem ajudar em muito. E também a consciência de que o momento em que estão vivendo é importante e o que escreverem vai fazer parte da história.
Os colegas nos quatro cantos do mundo estarão atentos ao que publicamos. Adrenalina que corre pelo corpo do repórter em situações com essa o mantém atento e focado no assunto. Por que tenho tanta certeza que os jovens se sairão bem nessa cobertura? Porque é o trabalho deles. Foram treinados para isso. Sempre digo nas minhas palestras para estudantes de jornalismo e nas redações pelo interior do Brasil: “Nunca ninguém disse que era fácil ser repórter”.
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Carlos Wagner é jornalista e trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.