Quando você lê jornal, assiste telejornais ou visita redes sociais você não acessa diretamente os dados, fatos ou eventos noticiados, mas sim a forma como os editores, repórteres e articulistas veem e entendem estes mesmos dados, fatos e eventos. Num ecossistema diversificado e transparente, o leitor, ouvinte ou telespectador tem maneiras de comparar versões, mas quando o noticiário compartilha um mesmo ponto de vista, isto configura um caso de desinformação, ou seja, visões parciais apresentadas como verdades plenas.
É o que está acontecendo com boa parte da imprensa mundial, particularmente aqui no Brasil, onde jornais e telejornais fizeram uma opção preferencial pelo lado da OTAN, Estados Unidos e Ucrânia, na guerra contra a Rússia. É uma estratégia editorial que privilegia um dos lados do conflito enquanto usa procedimentos burocráticos e formalistas para caracterizar a outra parte. O resultado inevitável é a geração de posicionamentos distorcidos na opinião pública.
A mesma situação ocorreu há oito anos, aqui no Brasil, quando a grande imprensa nacional passou a cobrir o caso Lava Jato dedicando muito mais espaço e detalhes ao lado acusatório do que à parte acusada. O efeito foi igual ao que agora assistimos no caso ucraniano. A opinião pública foi condicionada a ver as denúncias a partir de um determinado ponto de vista e esta atitude acabou se refletindo no resultado das eleições presidenciais de 2018, cujas consequências conhecemos agora.
Este tipo de estratégia noticiosa não pode ser rotulado apenas como fake news (notícias falsas) porque a rigor não há mentiras ou falsificações, mas distorções da realidade, conforme a metáfora do copo meio cheio ou meio vazio. A desinformação se tornou um procedimento noticioso muito mais importante do que as fake news. As notícias falsas podem ser desmascaradas com relativa facilidade, porque basta comparar fatos e dados, enquanto a desinformação requer conhecimentos especializados porque implica desconstruir estratégias informativas.
Os grandes conglomerados midiáticos têm feito um enorme esforço para exorcizar as fake news como parte importante do marketing corporativo destinado a manter ou reconquistar a credibilidade do público. A relevância atribuída ao combate às notícias falsas está servindo, no entanto, para mascarar o uso da desinformação como uma verdadeira estratégia editorial. É uma ingenuidade achar que os editores chefes e responsáveis pelo conteúdo noticioso de jornais, rádios, revistas e telejornais ignoram o fato de que estão violando o dogma jornalístico da isenção noticiosa.
Imitação de jornalismo
Um estudo publicado em 2020 pelo Berkman Klein Center da Universidade Harvard, nos Estados Unidos , mostrou que as redes sociais têm um papel secundário na desinformação e que os conteúdos são desenvolvidos por especialistas vinculados a políticos e empresas. Depois de analisar 55 mil artigos jornalísticos, cinco milhões de tuites e 75 mil postagens no Facebook, os pesquisadores chefiados pelo professor Yochai Benkler concluíram que as campanhas de desinformação empregam três práticas típicas do jornalismo para confundir e desorientar as pessoas.
A mais usada dessas práticas é a de sempre atribuir o dado ou fato a alguma personalidade influente, como foi o caso de Trump e, aqui no Brasil, do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores. A segunda prática mais empregada é a de apresentar a declaração ou anúncio de forma chamativa para induzir a produção de uma manchete jornalística capaz de atrair leitores, ouvintes e telespectadores. A terceira estratégia jornalística usada nas campanhas de desinformação é assumir uma aparência de isenção ao ouvir os dois lados, mas dedicar mais espaço a um deles limitando o outro a uma narrativa formal e burocrática.
O estudo do centro Berkman Klein mostra com números que a desinformação começa sempre a partir de um simulacro de jornalismo para depois ser disseminado pela imprensa e pelas redes sociais. A esta mesma conclusão chegaram pesquisadores como o biólogo norte americano Karl Bergstrom, que em 2018 estudou a forma como os vírus se propagam e acabou constatando que a comunicação tem um papel tão importante numa pandemia quanto o combate aos microrganismos transmissores de doenças contagiosas. Bergstrom chegou a criar um núcleo de cientistas para estudar a comunicação social em crises na saúde pública, partindo da ideia de que a medicina depende do combate à desinformação e às notícias falsas.
Um elemento essencial para o surgimento de um processo de desinformação é a existência de alguma base factual aceita por um considerável número de pessoas. Quando, por exemplo, as pessoas têm dúvidas sobre dados oficiais, a desinformação encontra um terreno fértil para se expandir. Esta desconfiança vem desde a era analógica, quando a informação era escassa e muitos governos abusaram do seu controle sobre os fluxos noticiosos para “plantar” na imprensa dados falsos ou distorcidos, apresentados como verdades insofismáveis.
Uma perigosa confusão de termos
Mais recentemente, as dúvidas das pessoas aumentaram com a universalização do uso da internet e da digitalização, duas inovações ainda vistas por muita gente como algo muito complicado, quase misterioso. Isto serviu de pretexto para que grupos de extrema direita utilizassem o pouco conhecimento de pessoas mais pobres para espalhar meias verdades e mentiras sobre fraudes no uso de urnas eletrônicas e sobre uma suposta ineficácia das vacinas contra a Covid 19.
A imprensa não deu a devida atenção ao fato de que desinformação e fake news são processos estruturalmente diferentes, embora funcionem juntos. As notícias falsas mudam a realidade enquanto os promotores da desinformação procuram levar as pessoas a ver os dados, fatos e eventos da mesma forma que eles. As fake news são um acessório da desinformação.
Quando o jornalismo confunde desinformação com fake news ele gera no público a percepção de que é possível acabar com ambas de forma cirúrgica e definitiva. A checagem de fatos permite uma grande eficiência no desmascaramento das notícias falsas, mas não consegue o mesmo efeito no combate à desinformação. Sem deixar clara a diferença entre ambos os processos de distorção da realidade, as pessoas são levadas a achar que é possível livrar-se rapidamente da desinformação, o que não é verdade. A desinformação é a principal consequência da disseminação das fake news.
As fake news podem ser produzidas em massa pelos chamados hackers, tanto autônomos como por grupos especializados como o chamado “gabinete do ódio”, ou os misteriosos programadores russos que teriam espalhado notícias falsas que interferiram na eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos. Já a desinformação é organizada por estrategistas de alto escalão tanto em governos, como em partidos políticos, instituições privadas e conglomerados empresariais.
Como combater uma prática “tóxica”
Desmascarar processos de desinformação é um complexo desafio para o jornalismo porque implica uma mudança radical nas rotinas profissionais. Já não é mais suficiente narrar o que está acontecendo. As pessoas precisam saber, de forma diversificada e transparente, como um dado, fato ou evento está sendo manipulado por quem tem interesse direto na questão.
Em janeiro último, Mathew Ingram, editor chefe da versão digital da Columbia Journalism Review, publicou um artigo em que qualifica a desinformação como uma “emergência social e política” e um fenômeno “tóxico” para o jornalismo. Estamos diante de uma situação inédita, pois o excesso de informação é hoje talvez um dos principais facilitadores da desinformação. A questão não é mais suprimir uma informação, mas soterrá-la por meio de uma avalanche de lixo noticioso e fake news geradas por robôs eletrônicos pré-programados.
Trabalhos acadêmicos mostram que o combate à desinformação pode ser feito pelo que ficou conhecido como prebunking, uma expressão inglesa para uma “vacinação” do público contra distorções informativas. O prebunking consiste em criar condições adversas para a disseminação de estratégias de desinformação. Uma espécie de remédio preventivo, conforme definiu a professora Joan Donovan, da Universidade Harvard. Ela afirma que é possível prever possíveis procedimentos desinformativos por meio da pesquisa sistemática dos fluxos informativos na internet.
A intensidade com que a desinformação está sendo praticada mundialmente por participantes da luta pelo poder político e econômico transforma o jornalismo numa ferramenta insubstituível para que o público possa separar o joio do trigo em matéria de objetivos ocultos no noticiário corrente. Nunca a profissão assumiu uma importância social tão grande. Mas isto tem um preço: incorporar o olhar crítico como a principal rotina da produção noticiosa e dedicar muito mais tempo para a pesquisa sobre o contexto social que nos cerca.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.