Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Veja

MARANHÃO
Diogo Schelp

Só lá Sarney é santo

‘‘Maranhenses desconfiam da ida do homem à Lua’, anunciava, no dia 20 passado, uma manchete no site da TV Mirante. A afiliada da Rede Globo pertence ao grupo de comunicações da família do senador José Sarney (PMDB). O conglomerado inclui as principais retransmissoras de TV do estado, quase duas dezenas de estações de rádio e o jornal diário de maior circulação, O Estado do Maranhão.. Nas últimas semanas, todo esse aparato de comunicação – com uma forcinha de afiliadas locais do SBT ligadas ao ministro de Minas e Energia, Edison Lobão – dedica-se a esconder dos maranhenses os rolos de José Sarney com nepotismo, conta no exterior, desvio de dinheiro público e tráfico de influência. É mais fácil acreditar que o homem nunca pisou na Lua.

O Estado do Maranhão vai às bancas com uma versão peculiar da realidade. Nela, Sarney é uma espécie de santo martirizado pela ‘mídia paulista’, pela oposição no Congresso, pelo Ministério Público e pelas pessoas que vazaram as gravações telefônicas, feitas pela Polícia Federal, entre o senador e seus parentes. O jornal diz que tudo não passa de manipulação política e pede rigor na investigação de quem passou os grampos à imprensa. Quando não dá para ser ainda mais servil, O Estado simplesmente muda de assunto. Sempre que possível, as manchetes exaltam as manifestações de apoio a Sarney, para passar a impressão de que toda a população maranhense é unânime na crença de que o político é vítima de uma campanha para tirá-lo da presidência do Senado e, assim, atingir o governo Lula. VEJA tentou entrevistar o diretor do jornal, Ribamar Corrêa. Mas ele se negou a falar.

No Maranhão, 90% dos meios de comunicação do estado estão nas mãos de grupos políticos. Infelizmente, não se trata de exceção. Fora dos grandes centros econômicos do Sul e do Sudeste, praticamente inexiste uma imprensa regional independente e isenta. Estima-se que quase três centenas de governadores, prefeitos e parlamentares sejam donos de veículos de comunicação no Brasil. E o que é pior: a Constituição não permite que deputados federais e senadores sejam sócios de empresas concessionárias de serviço público. Ou seja, eles são proibidos de ter rádios e TVs, sob o risco de perderem o mandato. A regra é ignorada sem solenidade. Quando muito, os políticos colocam as empresas no nome de parentes e laranjas ou assinam um termo ‘licenciando-se’ da gestão de seus negócios de comunicação. Como se isso evitasse que o conteúdo do noticiário obedecesse a seus interesses. Dos oitenta deputados federais e senadores com outorgas de rádio e TV, dois terços são das regiões Norte e Nordeste.

No Maranhão, as empresas dos Sarney e de Edison Lobão não são as únicas controladas por políticos. O grupo detentor das afiliadas da Rede Record e de algumas emissoras de rádio tem entre seus sócios o deputado federal Roberto Rocha (PSDB), inimigo dos Sarney. Na disputa pelo posto de o segundo maior jornal em São Luís estão O Imparcial, dos Diários Associados, um grupo nacional sem ligação direta com políticos locais, e o Jornal Pequeno, alinhado com qualquer liderança que se oponha aos Sarney. Em ambos, noticiam-se os escândalos recentes. Incapaz, portanto, de controlar todas as informações que chegam aos seus súditos, Sarney contratou uma equipe de quinze jornalistas recém-formados para inundar a internet – principalmente sites e blogs do Maranhão – com comentários positivos a seu respeito. Em outra tentativa de contrapor-se ao inevitável, na última sexta-feira, em seu artigo semanal na Folha de S.Paulo, o senador reclamou da falta de uma ‘lei de responsabilidade da mídia’ e se diz vítima de ‘tortura moral’. É mesmo como acreditar que o homem não foi à Lua.’

 

TECNOLOGIA
Veja

A ciência do palpite

‘Qualquer um que navegue em sites de notícias, serviços ou compras pela internet já passou pela experiência: assim que abre uma manchete ou clica em um produto para vê-lo em mais detalhe, o usuário é bombardeado com sugestões de outros itens que possam interessá-lo. Esses sistemas de recomendação são a maneira pela qual as lojas virtuais substituem a figura do vendedor e ampliam seu movimento. Nas lojas de verdade, claro, encontram-se bons e maus vendedores – há os que estudam os sinais subjetivos emitidos pelo freguês e enchem sua sacola com produtos que ele não planejava comprar, e há os desastrados, que o irritam com palpites descabidos e acabam por afugentá-lo. O mesmo acontece nos ambientes virtuais. Se o sistema é capaz de traçar um perfil fiel do cliente e seduzi-lo com sugestões que ele considera atraentes, vende mais; se o estorva, perde o negócio. A urgência dos grandes negociantes da internet em refinar seus sistemas de recomendação é tanta que o site americano de aluguel de filmes NetFlix tomou uma atitude inédita: instituiu um prêmio de 1 milhão de dólares para quem conseguisse melhorar em 10% a precisão de seu sistema de recomendação. A porcentagem pode parecer baixa – mas é uma tremenda barreira do ponto de vista da ciência de computação (e nem é preciso dizer que, rompida, pode reverter em muitos milhões de dólares a mais em volume de negócios).

Lançado em 2006, o concurso recebeu milhares de inscritos. No domingo 26, quando ele se fechou a novas contribuições, só dois times haviam atingido a meta. Batizados como Ensemble e BellKor’s Pragmatic Chaos, eles são formados por coalizões de alguns dos mais brilhantes cientistas da área, ligados a grandes institutos de diversos países. Se tentasse contratar algum desses times, o NetFlix dificilmente teria cacife para bancar seu trabalho. Mas, por meio dessa ‘multiterceirização’, não só está prestes a obter o que desejava como movimentou o meio acadêmico.

Até que o NetFlix anuncie um eventual vencedor, em setembro, ainda tem muitos números a destrinchar. O desafio, entretanto, já está rendendo frutos. As coalizões deram origem a novas empresas, e seus princípios teóricos começam a ser aplicados por outras corporações (os times são donos dos sistemas que criaram). Isso porque essa margem tão ínfima, de 10% de otimização, redundou em modelos matemáticos ultracomplexos, capazes de contabilizar variáveis que até aqui escapavam aos softwares mais usados.

O comum, quando se recebe uma sugestão de um site, é que o sistema a faça analisando o histórico de compras daquele cliente e do produto no qual ele demonstra interesse. Não é um método ruim, mas deixa algo a desejar. Primeiro, porque ignora produtos que até ali foram pouco avaliados pela clientela (as ‘notas’ que essa clientela atribui às compras são peça-chave de qualquer sistema). Segundo, porque às vezes interpreta mal os interesses do freguês. Em um artigo publicado em 2002 no Wall Street Journal, e que virou clássico já a partir de seu título – ‘Meu TiVo acha que sou gay’ –, o colunista Jeffrey Zaslow relatava o caso de um sujeito que, por razão desconhecida, passou a ser inundado pelo gravador digital de sua TV a cabo com programas de cunho homossexual. Na tentativa de persuadir a geringonça do contrário, ele começou a pedir atrações ‘de macho’, como filmes de guerra – só para o aparelho então cismar que ele era um nazista contumaz.

Os dois finalistas do Net-Flix adotaram abordagens diversas, mas que podem, em tese, diminuir os equívocos e as sugestões óbvias. Em termos muito simplificados, o modelo matemático da equipe BellKor’s procura dar conta das variações de gosto no tempo e até mesmo dar um peso à maneira como o humor do usuário pode influenciar sua nota – em linguagem técnica, são estudos de ‘dinâmica temporal’. O algoritmo do time Ensemble, por sua vez, agrupa os filmes em ‘constelações’ e determina a intensidade da ligação entre eles (veja o quadro). Muito do sucesso das duas equipes se deve ao fato de elas terem trabalhado com dados verdadeiros: à medida que treinavam seus algoritmos a interpretar os mais de 100 milhões de avaliações de 18.000 filmes, iam comparando os resultados à base real. Ambos os modelos aprimoraram em mais de 10% o sistema de sugestões já utilizado pelo NetFlix. A empresa ainda vai determinar qual deles melhor a atende. Mas, mesmo que não declare um vencedor – o regulamento prevê essa possibilidade –, uma coisa é certa: tais inovações vão propagar-se para outros ambientes virtuais. E a vitória aí é do cliente, que não mais será incomodado por ‘vendedores’ que oferecem geladeiras a esquimós ou areia a beduínos.’

 

PARCERIA
Benedito Sverberi e Luís Guilherme Barrucho

‘Mas não é o Google’

‘Nos 46 segundos e 91 centésimos que o nadador brasileiro César Cielo levou para vencer, na semana passada, a prova dos 100 metros livres do Mundial de Natação em Roma, 1,4 milhão de buscas foram feitas na rede mundial de computadores em todo o planeta. E o Google – marca que, como nenhuma outra, se transformou em sinônimo de internet – ficou com 70% desse total. No Brasil, a preferência é ainda maior: segundo a consultoria Predicta, 95 em cada 100 operações de busca são feitas com ele. Usar o Google quando necessitamos encontrar algo na internet beira a uma ação instintiva, como se estivesse cravada em nosso subconsciente ou em nosso DNA. Tal domínio demonstra a competência do sistema criado, há onze anos, por dois então estudantes da Universidade Stanford, os hoje bilionários Larry Page e Sergey Brin, cujo modelo matemático é capaz de entregar resultados de pesquisas de forma mais eficiente do que a da concorrência. Qualquer candidato a desafiar o Google, portanto, terá uma missão dupla: possuir uma ferramenta de buscas ainda mais poderosa e, além disso, convencer milhões de pessoas a abandonar um hábito que se tornou mecânico em seu dia a dia. Esse será o desafio à frente da Microsoft e do Yahoo!, que, na semana passada, selaram um acordo para tentar solapar o poderio do atual líder absoluto.

A parceria será válida por dez anos e combinará o novo sistema de buscas da Microsoft – o Bing – com a experiência do Yahoo! em atrair anunciantes. A Microsoft passará a fornecer tecnologia de buscas na internet para os sites do Yahoo!, enquanto este cederá a força de sua equipe de vendas para o atendimento de grandes contas de publicidade na internet de ambos os grupos. O Yahoo!, presidido por Carol Bartz, focará também no aprimoramento de seus portais, que estão entre os de maior audiência no mundo. Mas é a companhia de Bill Gates, agora comandada por Steve Ballmer, que cuidará de todo o desenvolvimento tecnológico do programa de buscas e da rede de servidores necessários ao seu funcionamento. A estratégia por trás do acordo, que ainda terá de ser aprovado pelos órgãos de defesa da concorrência, é impulsionar a utilização do Bing, atraindo mais receita com publicidade. Analistas estimam que o Google fique hoje com 75% do faturamento obtido nos Estados Unidos com links patrocinados, que é o negócio mais lucrativo da internet – são aqueles anúncios que aparecem ao lado na tela do computador sempre que se faz uma operação de busca.

Segundo o balanço do Google do segundo trimestre, 97% de seu faturamento veio desses links. Não é à toa que a companhia quer capturar o usuário de todas as formas e levá-lo para a internet. ‘O Google cria mecanismos para tornar a navegação na internet mais intensa. Desse modo amplia o potencial de vender mais e em condições mais vantajosas seus serviços de links pagos’, explica o presidente da Predicta, Marcelo Marzola. Esses ‘mecanismos’ são aplicativos dos quais muita gente não se dá conta que pertencem ao Google: Orkut, YouTube, Blogger, Picasa, Chrome e Gmail, entre outros. ‘A companhia está sempre buscando a inovação para evitar a obsolescência de seu próprio produto’, diz o diretor do centro de inovação e criatividade da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Paulo Sérgio Quartiermeister.

Esse modelo empresarial, o mais promissor na internet, é agora emulado por Microsoft e Yahoo!, empresas que pertencem a gerações mais antigas na indústria da informática. A principal fonte dos lucros da Microsoft, por exemplo, ainda é a venda de programas para computadores e do seu sistema operacional, o Windows. Mas trata-se de um negócio do passado, desafiado a cada dia por novos e melhores programas oferecidos gratuitamente – entre eles o navegador Chrome, desenvolvido pelo próprio Google. Como afirmou certa vez Jack Welch, o lendário ex-presidente da General Electric: ‘Se a mudança está ocorrendo fora da empresa mais rápido do que dentro dela, o fim está próximo’. É desse destino que a Microsoft e o Yahoo! tentam se salvar. Por enquanto, o Google segue no comando. Prova disso é a maneira irônica como foi apelidado o Bing, da Microsoft: But It’s Not Google – ou seja, ‘mas não é o Google’.’

 

TELEVISÃO
Marcelo Marthe

Como o Brasil vê televisão

‘Faz sete anos que Joslei Cardinot não dá as caras em nenhum shopping center. O apresentador do policialesco Bronca Pesada, fenômeno de audiência no Recife, foge do assédio dos fãs. ‘As pessoas querem me agarrar, me beijar. Acho esse negócio esquisito’, diz Cardinot – um tipo tão musculoso quanto carrancudo. Em Porto Alegre, os três apresentadores da revista jovem Patrola também são reconhecidos nas ruas – mas apreciam isso. ‘Todo mundo nos pede autógrafos’, diz um integrante do trio, Luciano Lopes, o Potter. A celebridade local alcançada por essas personalidades – ilustres desconhecidos em outras partes do Brasil – demonstra o poder regional da televisão. O país inteiro acompanha os passos dos artistas das novelas e as últimas de Silvio Santos? Pois as emissoras locais também têm seu sistema de estrelas e engalfinham-se em disputas por ibope. No Recife, o mesmo Cardinot está no centro de uma batalha renhida entre a Globo e a TV Jornal, parceira do SBT na cidade e exibidora do Bronca Pesada. A líder nacional em audiência há tempos busca desbancar o brucutu, cujo telejornalismo com sangue resiste em primeiro lugar na faixa do meio-dia. No Rio Grande do Sul, o Patrola foi, por sete anos, veiculado no horário do Caldeirão do Huck pela RBS, coligada da Globo no estado. Só a partir de 2006, quando a revista local foi transferida para as manhãs de sábado, os gaúchos tomaram conhecimento da existência de um tal Luciano Huck. No que concerne aos hábitos dos espectadores, definitivamente, há vários Brasis.

Em seus primórdios, nos anos 50, quando não existia transmissão por satélite e só havia programas ao vivo, a televisão era um veículo essencialmente regional. Na década seguinte, o videoteipe permitiu que o mesmo programa fosse exibido em diferentes localidades. A Globo transformaria o cenário nos anos 70, introduzindo a transmissão em rede nacional – modelo em que os canais locais retransmitem a programação de uma ‘emissora-mãe’. ‘Tínhamos de ser rígidos para obrigar as TVs regionais a acompanhar nosso padrão de qualidade’, diz José Bonifácio de Oliveira, o Boni, comandante da Globo naquele período. Nos últimos anos, contudo, uma maior valorização da ‘cor local’ se impôs. Nos noticiários, tornou-se questão de sobrevivência investir nos temas que estão na esquina do espectador. ‘As pessoas precisam sentir que a emissora está próxima delas’, diz Octávio Florisbal, diretor-geral da Globo. No diagnóstico da rede, a proximidade explica suas dificuldades atuais na Grande São Paulo, onde amarga suas piores audiências: as concorrentes Record, SBT, Band e RedeTV! têm sede na cidade e investem mais na cobertura local, enquanto a Globo oferece uma programação de sotaque mais neutro. As flutuações na audiência das novelas (veja o quadro) também obedecem a peculiaridades regionais.

Hoje, a Globo reserva em média doze a catorze horas semanais para as produções das emissoras das capitais coligadas à sua rede – o dobro do que destinava no começo dos anos 80. Fatores econômicos contribuíram para esse aumento. A ascensão do agronegócio levou o país a crescer em direção ao interior – e a televisão corre atrás dessa riqueza. O Mapa da Mina, estudo da Globo dirigido aos anunciantes, demonstra que os melhores períodos para fazer propaganda de novos produtos e serviços nas emissoras locais são aqueles que coincidem com o início da safra em cada lugar. Vale mais a pena anunciar em certas regiões do interior do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul de fevereiro a abril, quando a colheita de maçã inunda seu comércio de dinheiro. Nos lugares onde se produz soja, é melhor veicular comerciais na TV entre fevereiro e junho. A produção local, no entanto, tem seus limites, condicionados pela economia de cada região. Para Octávio Florisbal, nas grandes cidades, onde o mercado publicitário é mais vigoroso, ainda haveria espaço para um aumento da programação regional. Nas praças menores, ela já se encontraria próxima de seu limite. Desde 1991, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) que pretende regular a questão. Sua versão original previa que as emissoras dedicassem 30% da programação às atrações regionais. O texto sofreu mudanças ao ser aprovado numa comissão da Câmara: estabeleceram-se cotas de programação local crescentes conforme o tamanho da cidade. A tramitação do projeto está parada no Senado desde 2003 – o que não impediu que a produção regional continuasse florescendo. É de perguntar se a camisa de força das cotas é de fato necessária num mercado que há décadas vem se autorregulando.

No chamado horário nobre, que se estende das 18 às 23 horas, há mais gente diante da TV do que em qualquer outro momento do dia – e a audiência é atraída pelas produções nacionais das grandes redes. Pois bem: a programação local tem seu próprio horário nobre. Numa tradição que remonta à era cenozoica da TV, suas principais atrações se concentram no período que vai do meio-dia às 2 da tarde, de segunda a sexta-feira. Em capitais como Macapá e Teresina, além de um bom número de cidades do interior, o porcentual de televisores ligados durante esse horário nobre regional fica em torno dos 60% – um índice tão elevado quanto o noturno. Além do jornalismo local, outros dois itens imperam nessa faixa: a programação esportiva e o sensacionalismo. Uma mesa-redonda futebolística transmitida desde 1997 pela TV Alterosa, associada do SBT em Belo Horizonte, deu tão certo que seu formato vem sendo copiado por outras emissoras regionais pelo país afora. Com média de 7 pontos, que lhe garantem o segundo lugar no Ibope, o Alterosa Esporte coloca torcedores dos três grandes rivais mineiros – Atlético, Cruzeiro e América – para bater boca no ar. ‘Há dias em que tenho de acalmar os ânimos’, diz o editor e apresentador Leopoldo Siqueira.

O telejornalismo estilo ‘mundo-cão’ é o prato principal do horário do almoço nordestino. Isso se explica pelos altos índices de criminalidade da região. Além de Cardinot, a TV Jornal, em Pernambuco, emprega mais uma estrela do ramo na sua sucursal de Caruaru, cidade de 300 000 habitantes no agreste pernambucano. O Sem Meias Palavras tem como chamariz as entrevistas de porta de delegacia feitas pelo repórter Givanildo Silveira, contrabalançadas por quadros, digamos, comportamentais. As reportagens sobre um certo bêbado Jeremias e sobre o cachorro que faz sexo com uma garrafa PET transformaram Givanildo em hit no YouTube – ele até lançou um DVD com seus ‘melhores momentos’. O repórter de Caruaru tem uma técnica compassiva para arrancar confissões de bandidos: ‘Tem repórter que é ríspido.. Eu, não. Ofereço o ombro. Dou água. Dou comida. E as pessoas se abrem’.

Cardinot e Givanildo são verdadeiros gentlemen perto do principal expoente da baixaria baiana, José Eduardo Figueiredo Neves, o Bocão. O programa Se Liga Bocão – da TV Itapoan, parceira da Record no estado – apresenta imagens chocantes de atropelamentos, assaltos e cadáveres. Boa parte desses flagrantes é captada por espectadores munidos de celulares. Depois de ter seus excessos enquadrados pelo Ministério Público, em abril, a atração ficou um pouco mais recatada: se antes chegava até a exibir vísceras, agora só mostra imagens desfocadas de cadáveres. O apresentador se jacta de ter sido o responsável pela eleição de um travesti para vereador. Leo Kret, a figura em questão, foi escalado para proporcionar momentos mais leves ao Se Liga Bocão. ‘Ninguém aguentava ver só cadáveres por uma hora e meia’, diz o apresentador. Com a fama conquistada na TV, Leo lançou-se na política e foi o quarto mais votado para a Câmara Municipal de Salvador. Outra estrela da TV Itapoan, Raimundo Varela – que há 29 anos apresenta o Balanço Geral – se diz cortejado por todos os partidos. ‘O governador Jaques Wagner já me chamou para o PT, o ministro Geddel Vieira Lima já me convidou para o PMDB, mas sempre me pedem para ser vice. Não topo. Vice não manda em nada’, diz. Com uma fórmula assistencialista – o programa sorteia todos os dias um carrinho de supermercado no valor de 350 reais –, o Balanço Geral tornou-se o modelo para mais de trinta versões genéricas espalhadas pela Record no Brasil. A mais bem-sucedida delas é comandada por Wagner Montes no Rio de Janeiro.

As produções regionais não vivem apenas das aberrações. Contrariando a surrada teoria esquerdista de que a TV ‘padroniza’ a cultura, vários programas fazem sucesso investindo nas particularidades de cada lugar. Tanto a gaúcha RBS quanto a pernambucana TV Jornal produzem especiais de teledramaturgia – ainda que de forma mais modesta que as grandes redes, as únicas com capacidade econômica de botar uma novela em pé. A TV local também celebra a música e a cultura próprias. No Galpão Crioulo, no ar há 27 anos pela gaúcha RBS, o apresentador Antonio Augusto Fagundes e seu sobrinho Neto Fagundes surgem em cena de bombacha para apresentar os destaques da música gauchesca. Exibido pela TV Anhanguera, coligada da Globo em Goiânia, o Frutos da Terra traz videoclipes (algo mambembes, diga-se) de música típica do cerrado. Em Belém, o bem-sucedido É do Pará, da TV Liberal (outra associada da Globo), enfoca temas como a culinária regional. Também no Pará, a estatal TV Cultura segue a tradição de sua congênere paulista homônima: produz programas infantis de qualidade, como o show de bonecos Catalendas (espécie de resposta amazônica ao fenômeno Cocoricó).

Ligadas a grupos que controlam as afiliadas da Globo em suas regiões, a Amazon SAT, de Manaus, e a TV Diário, de Fortaleza, oferecem programação 100% regional. E já a levaram de graça, via satélite, para além de seus estados. Tempos atrás, por pressão da Globo, a Amazon SAT deixou de ter seu sinal liberado para antenas parabólicas. Sob a mesma justificativa – a de que fazia concorrência desleal com as TVs dos estados vizinhos –, a TV Diário voltou a ser transmitida apenas no Ceará. Essa última produz o humorístico Nas Garras da Patrulha, cujos bonecos toscos – como o personagem Coxinha – ganharam notoriedade no YouTube. Outro de seus programas, o Forrobodó, propulsionou a carreira da maior estrela da TV local cearense, o apresentador e empresário Tony Nunes – que ganha dinheiro cobrando taxas de 2 000 reais das bandas de forró que se apresentam na atração. Nunes acaba de trocar a TV Diário por um canal de transmissão exclusiva por satélite. Ficou irritado com o recente achatamento por que passou seu salário, de 50 000 para 10 000 reais mensais. ‘Foi um golpe covarde’, diz ele. Não é só Gugu Liberato que fica magoado com coisas assim.

Com reportagem de Leonardo Coutinho,Luciana Cavalcante, Fernanda Guirra, José Edward, Igor Paulin e Bruno Meier

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A importância do sotaque

‘Para fazer sucesso por aqui, tem de ter um sotaquezinho regional’, diz Ico Thomaz (no centro da foto), apresentador – ao lado de Rodaika Daudt e Luciano Lopes, conhecido como Potter – do Patrola, programa da RBS TV, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul. O sotaque está até no nome. ‘Patrola’ é como os gaúchos chamam um trator usado para aplanar terrenos – uma niveladora que passa por cima de tudo, tal como o programa de variedades tenta fazer: pode trazer entrevistas com ex-BBBs, pegadinhas com jogadores de futebol e reportagens sobre uma festa no interior. Voltado para os jovens – mas aprovado pelas ‘vovozinhas’, segundo Thomaz –, o Patrola alcança uma média de 11,6 pontos de ibope, 43% dos televisores ligados nas manhãs de sábado.

Conselheira de moda da Bahia

No ar há dois anos e líder de audiência no início da tarde de sábado, o programa Mosaico Baiano, transmitido pela TV Bahia – afiliada da Globo em Salvador –, segue o estilo ‘revista eletrônica’, com uma eclética mistura de reportagens, dicas de cultura e gastronomia. Entre os apresentadores, há até uma das proprietárias da emissora: Paula Magalhães, filha do deputado Luís Eduardo Magalhães, morto em 1998, e neta do poderoso Antonio Carlos Magalhães – cujo espólio (incluindo a TV Bahia) é fruto de uma renhida disputa entre os herdeiros. Ela comanda o quadro Dica de Moda, gravado no interior de shopping centers e de lojas badaladas de Salvador. ‘Minha intenção é mostrar que qualquer pessoa pode se vestir bem, trazendo conceitos de moda para todos os públicos’, teoriza Paula. Ela garante que responde pessoalmente a todos os e-mails de telespectadores que escrevem pedindo conselhos.

Contra as almas sebosas

O apresentador Joslei Cardinot é o pit bull da televisão regional. No policialesco Bronca Pesada, que faz sucesso no horário do almoço no Recife, o fortão vocifera contra a bandidagem e exibe muitas imagens de cadáver. Ele ataca, sobretudo, os pedófilos. ‘Irrita a gente ter de chamar esses elementos de seres humanos’, diz. Em 2006, Cardinot teve de incluir um colega de crachá em sua lista negra: Denny Oliveira, ex-apresentador da mesma TV Jornal, afiliada do SBT, foi acusado de abusar sexualmente de meninas em seu camarim. Cardinot, de 45 anos, é praticante de remo, musculação e kung fu. Por trás da fachada de troglodita, há um sujeito que cuida do espírito. Em breve, ele lançará seu primeiro romance policial. Kardecista, inventou uma expressão curiosa para se referir aos bandidos: ‘almas sebosas’. ‘É um bordão patenteado’, informa Cardinot – que fatura cerca de 120 000 reais por mês, rendimento digno de um artista das redes nacionais.

É lixo só

Exibido desde 2001 na TV Diário – emissora em UHF da Sistema Verdes Mares, no Ceará –, o humorístico Nas Garras da Patrulha alcança, no pico, meros 3 pontos de ibope no horário da tarde. Mas seus quadros, encenados por 35 bonecos do grupo Circo Tupiniquim(na foto, os manipuladores Carlos César e Francisco Duarte), de Fortaleza, se transformaram em hit no site YouTube – o mais visto já foi acessado 670 000 vezes. Com humor chulo e vocabulário tosco (fala-se, por exemplo, em dar ‘surras de tauba’ na sogra), o programa encena situações cotidianas, como o sufoco de um ônibus cheio. O personagem mais popular é o limpador de fossa Coxinha (à dir. na foto, com tesoura na mão), um perfeito mau-caráter. ‘Ele é a melhor definição do cara falso, que nos elogia frente a frente, mas diz o oposto quando viramos as costas’, conta Marco Antônio Oliveira, diretor do programa. Os cenários, também a cargo do Circo Tupiniquim, utilizam adereços velhos e lixo reciclado – o que define bem a natureza do programa.

Matéria-prima amazônica

No infantil Catalendas, produzido há dez anos pela TV Cultura do Pará, a Preguiça é uma espécie de avó sábia que conta histórias ao neto – ou, no caso, o macaco Preguinho. Os dois são os únicos personagens fixos do programa, que a cada edição encena um caso popular ou uma lenda amazônica com os bonecos do grupo In Bust, do diretor artístico Aníbal Pacha. ‘Nós buscamos mesclar bem as fontes das narrativas. Entram contos de terror, causos de pescador e fábulas indígenas e negras’, diz o diretor do programa, Roger Paes. Da pesquisa das lendas até a gravação, cada episódio leva em média dois meses para ser concluído. O grupo In Bust procura incorporar a cultura regional até na confecção dos bonecos – cujo material básico é uma palmeira chamada miriti, tradicionalmente usada para fazer brinquedos na região amazônica. Fora do Pará, o Catalendas é exibido em várias outras emissoras da rede educativa e no canal pago Rá-Tim-Bum.’

 

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