A música sertaneja voltou ao noticiário com a revelação de mais um escândalo da era bolsonarista, dessa vez envolvendo, o que se suspeita, uma versão musical das chamadas “rachadinhas”. Porém, antes vale fazer uma rápida pesquisa sobre os gostos musicais do presidente Bolsonaro. Na viagem de Bolsonaro à reunião do G20 a Roma, na Itália, ninguém soube de algum pedido do presidente para ir a um teatro ouvir uma bela ópera italiana (ele é bisneto de italiano).
Isso não surpreendeu ninguém, porque todos sabem, particularmente a imprensa, da pouca cultura literária, musical e geral do presidente, talvez a razão pela qual praticamente zerou as dotações orçamentárias destinadas para o incremento das atividades culturais no Brasil. Arte, para ele, nas suas diversas manifestações, deve ser perda de tempo.
O único livro por ele citado com certa insistência é a Bíblia, porém ninguém acredita ter dedicado algumas horas para a leitura completa dos Evangelhos (mesmo se um de seus nomes é Messias), ou para curtir a sabedoria dos livros de Eclesiastes ou Provérbios e muito menos a poesia dos Salmos. Os poucos versículos por ele citados têm sempre uma conotação reacionária ou um toque eleitoreiro.
Sua ojeriza a tudo quanto possa cheirar esquerda, seu horror à negritude, seu desejo de agradar aos fundamentalistas e carreiristas evangélicos deve ter lhe impedido de gostar e saborear a música popular brasileira. Uma pesquisa revela ter sido apreciador do grupo de rock Scorpions; seu gosto atual é pela música sertaneja, tendo mesmo alguns preferidos, como Gusttavo Lima e Zé Neto.
Essa preferência é perfeitamente partilhada pela quase totalidade dos atuais cantores e compositores sertanejos, como passaram a se chamar os antigos intérpretes da música caipira. Em janeiro deste ano, Cuiabano Lima leu um manifesto de apoio a Bolsonaro da grande maioria dos artistas sertanejos, entregue pessoalmente ao presidente numa manifestação pública. Os argumentos utilizados no manifesto estão agora totalmente superados e desmentidos pela atual crise econômica brasileira.
Na semana passada, dentro da onda sertaneja, a dupla de gêmeos Mateus e Cristiano compôs um longo jingle para a campanha presidencial de Bolsonaro, divulgado com a presença do presidente e de Luciano Hang, dono da Havan, dentro do mesmo evento da visita do bilionário Elon Musk. A dupla parece bem relacionada com empresários próximos ao presidente.
A letra da composição “Capitão do Povo” é de qualidade primária, repete chavões e termina com a frase sempre utilizada por Bolsonaro, “O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, qualificada pelo pastor batista Henrique Vieira, como frase de inspiração fascista.
A rachadinha musical
Quem provocou a suspeita dessa nova rachadinha em toada sertaneja foi a cantora funk de renome internacional, Anitta, depois de agredida verbalmente por Zé Neto, um dos mais conhecidos cantores sertanejos bolsonaristas. Anitta, que é admiradora de Lula, tinha feito referência à Lei Rouanet, pela qual se pode destinar ao custeio de atividades culturais uma parte do que seria destinado ao pagamento do imposto de renda. Na verdade, uma parte ou parcela pequena -igual a 6% do que seria pago por pessoas físicas ou 4% por empresas.
Zé Neto, com certa empáfia, se vangloriou de não precisar da nenhuma Lei Rouanet para seus shows, pois são financiados pelas próprias prefeituras, e com isso criou sua própria arapuca, chamando a atenção da imprensa e das finanças federais para os valores cobrados por esses shows. O grupo musical do cantor Gusttavo Lima foi o primeiro a ser alfinetado, revelando-se o absurdo de pequenas comunidades pobres rurais estarem financiando shows milionários de música sertaneja no valor de centenas de milhares de reais.
A seguir, a questão provocou um verdadeiro tsunami ao serem revelados os valores ou preços dos shows cobrados das prefeituras pequenas e pobres pelos artistas e grupos sertanejos. E acabaram provocando desconfianças, pois os valores deixam praticamente vazias as caixas dessas prefeituras destinadas às escolas, atividades culturais e mesmo obras públicas das cidades!
Assim, a pequena cidade de São Luís de Roraima, com 8 mil habitantes, tinha contratado um show de Gusttavo Lima por 800 mil reais; outra pequena localidade, Conceição do Mato Dentro, teria um show no valor de 1 milhão e 200 mil com o mesmo grupo de Lima. Esses shows milionários, anulados depois da má repercussão pela imprensa, em cidades geralmente desprovidas de saneamento e obras públicas básicas, levantaram a suspeita de um novo tipo de rachadinha, a “rachadinha sertaneja”, pela qual os prefeitos também ganhariam seu cachê, diluído nos custos do show.
A suspeita tem sua razão: até agora, as prefeituras interessadas em promover shows não entravam na verba destinada à escola, saúde ou às obras da cidade, mas procuravam um patrocinador. Caso não achassem, alugavam um teatro ou estádio e cobravam entrada. Fica o recado aos grupos sertanejos: fazer shows milionários com dinheiro de prefeituras pobres não é mostra de sucesso mas de abuso, com desvio do dinheiro público.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.