Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manchete de matar

No dia 22 de novembro, eu estava em Caxambu (MG), participando de um congresso. Na mesinha do hotel, vários jornais. Os olhos sobrevoaram as manchetes, e a do Globo atraiu minha atenção: ‘Celso Furtado é enterrado no Rio, sem Lula’.

Talvez influenciado pelo clima do evento, cujas palestras e debates exigem leitura contínua dos múltiplos sentidos dos sutis discursos acadêmicos, captei o que não deveria ter captado: Lula não fora enterrado com Celso Furtado!

A manchete me fez pensar em várias coisas.

A ambigüidade pode, sorrateira, surgir em nossos textos. Por falta de espaço ou de tempo, o jornalista (ou o redator) quase fez Lula sofrer um terrível acidente. E se não enterrou vivo o presidente, meteu o pé na cova da anfibologia sintática.

Imprecisão cavada

Diferentemente do que se escreveu em outros jornais – ‘Corpo de Celso Furtado foi enterrado no Rio’ –, nesta manchete não se fez essa educada distinção metafísica entre o falecido e o homem em seu pleno exercício de existir – corpo, alma e biografia.

Se a idéia era enfatizar a ausência de Lula, a manchete poderia conter, logo no início, a informação: ‘Sem a presença de Lula…’

E já que estamos analisando a manchete nos seus mínimos detalhes, é necessário atentar para o fato de que o corpo do grande economista foi enterrado no… rio. Não na terra do Rio de Janeiro. Uma imprecisão cavada, reconheço.

Apenas o que podia

Celso Furtado, ilustre paraibano, intelectual de primeira categoria, membro da Academia Brasileira de Letras, não merecia essa manchete. Logo ele, observador arguto, segundo o qual a debilidade maior dos pensadores de nosso país reside ‘na pobreza de formulações teóricas e de idéias operacionais’. Também nos faltam manchetes que estejam à altura dos fatos noticiados.

Paradoxalmente, a literatura, a poesia (âmbitos em que a ambigüidade é desejada, ao contrário do que acontece na prosa nossa de cada dia) constituem o melhor antídoto para escorregões gramaticais. Leio em Manoel de Barros: ‘Hoje amarrei no rosto das palavras minha máscara. / Faço o que posso.’

Este ‘faço o que posso’ é deliciosamente dúbio. Supõe resignação (faço o máximo que posso, e não posso muito) e capacidade de expressão (faço tudo o que posso, até amarrar minha máscara no rosto das palavras, tarefa nada fácil).

O tituleiro da manchete em questão não fez tudo o que podia. Ou fez apenas o que podia.

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Doutor em Educação pela USP e escritor