Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O referendo do relógio cuco

Há uma boutade em O Terceiro Homem que se conta ter sido um improviso de Orson Welles no instante da filmagem. Referindo-se à Suíça, diz ele ao interlocutor que, em meio a traições, envenenamentos e assassinatos dos Bórgia, os italianos produziram uma Renascença. Já os suíços, após séculos de ordem e democracia, produziram o quê? ‘O relógio cuco’.

Com todo respeito… como costuma dizer a coluna de Ancelmo Goóis em O Globo. Welles, como todo criador de gênio, podia-se permitir a esses arroubos divertidos, sem suscitar a ira do alvo, que certamente terminaria atingindo o comum dos mortais.

Mas a sarcástica tirada do cineasta me vem imediatamente à cabeça depois da repercussão na imprensa do resultado do referendo suíço sobre os minaretes islâmicos, cuja construção deverá ser doravante banida de todos os cantões daquele território nacional. Minarete, como bem se sabe, é a pequena torre ao lado da mesquita, de onde o muezzin convoca os fiéis para a oração.

Crença religiosa à parte, esse chamado é esteticamente apreciável. O árabe é uma língua mística e reflexiva, com grande complexidade gramatical e notável sonoridade fonêmica. A chamada aos fiéis, que repete o versículo inicial do Corão – confirmando a unicidade de Alá e a condição profética de Maomé – é uma recitação em que se esmeram, como na prolação de um poema, os locutores. E, como num poema, a pura e simples tradução dificilmente restituiria a carga simbólica da língua original.

Estado nacional é laico

Segundo os jornais, a maioria vitoriosa no referendo foi de 52%, o que salva do ridículo 48% dos cidadãos suíços. Ridículo – há poucas outras palavras disponíveis para se definir essa decisão, lamentável até para o próprio governo federal da Suíça, conforme nota oficial distribuída à imprensa. O ponto crítico da questão se põe assim: como conviver democraticamente com a crença do Outro rejeitando a integridade de seus templos ou santuários? Em outros termos, como tolerar sem tolerância?

Apesar da tímida autocrítica governamental, o fato é que o referendo foi proposto e organizado por dispositivos de Estado, com todas as injunções de obrigatoriedade do cumprimento da decisão. E mais: foi imediatamente apoiado pelo presidente da França (onde existem seis milhões de muçulmanos), para quem os fiéis islâmicos deveriam ser ‘mais discretos’ em termos religiosos. Nicolas Sarkozy não deixou por menos a escalada do ridículo: a ‘indiscrição’ (a ser entendida como a demonstração pública da fé ou a construção de monumentos religiosos) deveria ser reservada ao catolicismo, por ser mais ‘natural e local’.

Mas se o evento se afigura de imediato como ridículo em termos de ética social imediata – essa em que pontificam os costumes e as injunções coletivas de se respeitar a sua diversidade –, não escapa ao olhar mais cauteloso o risco político de uma nova variedade das ideologias nacionais em ascensão nos países ditos de Primeiro Mundo.

Como já observaram analistas de diversas linhagens teóricas, toda ideologia nacional vive da entronização de ideais para os quais se possam transferir os sentimentos de sacrifício, amor, temor, respeito etc. De onde se transferem? Precisamente das comunidades religiosas, que são cimentadas por afecções dessa natureza. Mas como bem se sabe, há muitíssimo tempo, os Estados nacionais vêm deixando de recorrer à universalidade teológica apregoada pelo catolicismo tradicional, reservando apenas uma reverência esporádica às autoridades ungidas por Roma. O Estado nacional é laico, proclamam aqueles que apostam numa cidadania republicana, livre da heteronomia sobrenatural.

O ovo da serpente

Na prática, porém, o universalismo da crença administrado por Roma pode assumir a forma de ‘religião de Estado’, ao modo de uma forma transitória de ideologia nacional, como um escudo contra o que se supõe serem ameaças do Outro (o imigrante, o representante de outra cultura ou de outro sistema civilizatório), agora numerosamente muito próximo, às vezes, vizinho de porta. Os véus nas cabeças das mulheres, as prostrações diárias para as orações, as mesquitas com seus minaretes, as recitações jaculatórias podem soar como fantasmas contra-hegemônicos aos cultores da etnicidade fictícia em que implica a ‘comunidade imaginada’ (expressão com que Benedict Andersen designa a nação) instituída por todo Estado nacional.

É essa ideologia canhestra e anacrônica que preside a iniciativas como o referendo suíço, a preocupações com a ‘identidade nacional’ como aquelas manifestadas por Sarkozy ou ao desejo dos grupos ultraconservadores de acrescentar a cruz católica à bandeira italiana. Curiosamente, é a mesma dos reinados petrolíferos ou das nações em aparente decomposição social, que a imprensa ocidental costuma erigir como o oposto do mundo civilizado.

Pode ser que tudo termine em pizza, mas quem leva a sério a hipótese da aparição concomitante e internacional de um novo tipo de fascismo deve botar as barbas de molho. A intolerância é apenas o ovo da serpente.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro