Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bolsonaro não aceitará uma derrota

(Foto: Agência Brasil/Marcelo Camargo

Faz um ano, aqui no Observatório da Imprensa, eu recorria a uma série de discursos do cônsul romano Marco Túlio Cícero, pronunciados no Senado de Roma cerca de 40 anos antes de Cristo, adaptando-os à realidade brasileira. Eu dizia que o conspirador e golpista da época, Lúcio Sérgio Catilina, poderia ser facilmente identificado com o Bolsonaro de nossos dias, sua milícia e seus seguidores, conspiradores e golpistas.

Durante o passar desses doze meses, a situação de ameaças golpistas não terminou: assumiu outros contornos, embora a base seja sempre a mesma alegação mentirosa e sem fundamento do risco de fraude nas eleições com voto eletrônico. Com essa constante repetição por antecipação da mentira de eleições fraudulentas em outubro, tanto a imprensa, quanto os candidatos adversários do presidente Bolsonaro, acabaram se acostumando, a ponto de agora, dezesseis semanas antes do pleito, acharem não haver nenhum risco de subversão da ordem democrática.

Solerte agitador, matreiro e mentiroso contumaz, Bolsonaro conseguiu seu intento de desmobilizar seus adversários, à força de repetir descaradamente em público seu projeto golpista, a ponto do seu projeto criminoso de golpe passar a ser considerado como falácia ou delírio.

Ora, nesses três anos e meio de governo, Bolsonaro aproveitou para aperfeiçoar seu projeto de permanência no poder. Só não vê quem não quer, tantos são os sinais dados aos seus fiéis seguidores, aos quais caberá a tarefa de provocar o caos e assegurar a ruptura da ordem democrática.

Ainda há alguns dias, Bolsonaro, na cidade de Umuarama, no Paraná, passou a mensagem de que “se precisar, iremos à guerra contra os inimigos internos que querem roubar nossa liberdade”. Não ficou suficientemente claro? Não há nenhuma linguagem cifrada. E acrescentou, num discurso repassado ao chamado gado bolsonarista, mas transcrito igualmente com destaque pela mídia, “o desejo de que comecem a pensar nisso, pois gostaria de tê-los juntos com ele”.

Alguns dias depois, num trecho de entrevista divulgada pela UOL, Bolsonaro, como se não soubesse das pesquisas eleitorais das últimas semanas prevendo sua derrota, soltou uma frase bem reveladora de suas intenções: “diante do que tenho visto, acho que devo ganhar no primeiro turno”.

E uma terceira mas suficientemente clara evidência de haver um plano de Bolsonaro para enfraquecer o STF e o TSE: a  crise criada dentro do STF pelo ministro bolsonarista Kássio Nunes Marques, suspendendo monocraticamente decisões do Tribunal Superior Eleitoral ,que puniu parlamentares por difundirem informações falsas sobre as urnas.

Essa decisão unilateral do chamado “10% de Bolsonaro” no STF poderia ter sido rapidamente anulada, mas o ministro André Mendonça, considerado “os outros 10% de Bolsonaro”, impediu o prosseguimento do julgamento ao pedir vista do processo.

Isso não permitiu a anulação da cassação do mandato do deputado estadual Fernando Francischini imposta pela Justiça Eleitoral, pois um outro julgamento, na terça-feira dia 7 de junho, derrubou por 3 a 2 a decisão monocrática de Nunes Marques. Entretanto, nem ele e nem Mendonça, minoritários dentro do STF, esperavam reverter a decisão do Superior Tribunal Eleitoral.
Ambos tinham como objetivos abrir dentro do STF uma discussão sobre as fake news ou notícias falsas nas redes sociais e sobre a vulnerabilidade e possibilidade de fraude com o voto eletrônico.

Esse objetivo foi plenamente obtido junto ao eleitorado bolsonarista, tanto que o presidente Bolsonaro pronunciou um discurso, logo a seguir, no Planalto, para condenar a decisão do STF por 3 a 2, dizendo textualmente que o deputado Francischini tinha sido cassado por dizer as mesmas coisas que ele, Bolsonaro, havia dito sobre as eleições em 2018, quanto a irregularidades constatadas e denunciadas por muitos eleitores no momento de votar.

Essas denúncias, apesar de terem sido agora repetidas pela enésima vez pelo presidente, não deixam de ser fake news, pois nunca foram constatadas ou confirmadas. Na verdade, ele poderia ser também inculpado por disseminar mentiras como foi o deputado Francischini.

Bolsonaro, visivelmente irritado, declarou ainda que não cumprirá decisões do STF e que “não viverá como um rato”, num discurso tendencioso, utilizando argumentos falaciosos e deixando claro, como sempre tem feito, que só aceitará o resultado das eleições “se tiverem sido limpas e seguras”. Ou seja, se não forem por voto eletrônico, reclamando a participação militar no controle das eleições, e repetindo que, no passado, ganhava quem tivesse votos nas urnas, não num cofre controlado por alguns.

Nesta altura, não resta qualquer dúvida, Bolsonaro contestará a validade do resultado das eleições e provocará uma crise institucional. A única maneira de se evitar a chegada desse caos trombeteado por ele seria a de se iniciar imediatamente um processo de impeachment: por apregoar mentiras e falsas informações sobre o voto eletrônico, por incitar seus seguidores a não aceitar os resultados das eleições de outubro, por deixar claro suas intenções golpistas caso não seja reeleito, e por querer provocar, com suas frases invocando o uso de armas, um clima de reação armada no país.

O golpe de Catilina

Há uma razão pela assimilação dos discursos do senador romano Catilina ao presidente Bolsonaro. Catilina, sedento pelo poder, não podia se conformar com a dupla derrota que sofreu ao posto de cônsul e iniciou uma conspiração junto aos nobres e à elite romana no ano 63 AC. Um complô foi organizado com o plano de assassinar personalidades importantes e senadores; o golpe começaria com o assassinato do cônsul Cícero que, advertido sobre esse perigo, se protegeu e lançou as tropas contra os seguidores de Catilina, morto nesses combates.

Documentos sobre Catilina descrevem-no como alguém capaz de grande maldade e cupidez, responsável por torturas e mortes atrozes, como a de seu cunhado Marcus Marius Gratidianus, decapitado, depois de braços e pernas quebrados, e os olhos, arrancado. Na juventude, teria assassinado sua primeira esposa e seu filho para poder se casar com outra.

Uma ideia do caos em outubro

Ao repetir, faz alguns dias, “não acreditar numa derrota”, algo que poderia ser interpretado como “não aceitarei uma derrota”, o plano provável de Bolsonaro seria o de reforçar ao máximo, junto aos fiéis seguidores, um clima de desconfiança no voto eletrônico às vésperas das eleições, utilizando suas redes sociais e declarações.

Tão logo sejam divulgados os resultados, caso se confirme sua derrota, é provável Bolsonaro venha fazer uma declaração não aceitando a derrota e denunciando fraude. Com isso, poderá deflagrar uma crise institucional, dependendo sua sequência da reação da Câmara, do Senado, dos policiais e militares, havendo manifestações pró e contra Bolsonaro em lugares diferentes, que poderão degenerar com o uso de armas.

O TSE, que será comandado a partir de agosto por Alexandre de Moraes, poderá ter algumas de suas decisões derrubadas pelos “20% de Bolsonaro” no STF. É aqui que entra a crise de desconfiança no STF e TSE criada estes dias por Nunes Marques, reforçando a crise institucional. Seria o momento em que Bolsonaro convocará seus seguidores para “irem à guerra?”.

Tarso Genro, ex-prefeito de Porto Alegre, declarou recentemente haver perigo de golpe, mas que se houver, Bolsonaro não ficará no poder. Nesta ficção, tudo dependerá da decisão das Forças Armadas. Os militares irão preservar a democracia ou aderir ao caos?

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.