Na falta de um argumento, elas fazem um abaixo-assinado. Milena Almeida e Angélica Basthi convocaram oitocentas e vinte e uma pessoas físicas e mais quatro mil e seiscentas e quarenta e três entidades para subscrever seu ‘Sim, é necessária uma nova Abolição‘ (OI, 15/12/2009), que finge ser uma tréplica a meu ‘Matem os escravistas‘ (OI, 3/11/2009).
O artigo da multidão tem uma graça involuntária. Milena, jornalista, escreve:
‘Vale lembrar também que Muniz Sodré está amparado por uma clarividência histórica acompanhando por extensa lista de pensadores, pesquisadores e intelectuais como Kabenguele Munanga, Abdias Nascimento, Sueli Carneiro e tantos outros.’
Não é uma marcha luminosa, essa de Sodré, amparado pela tal senhora ‘clarividência história’ e ladeado não apenas por meros ‘pensadores’ como ainda por outras pessoas, que são ‘intelectuais’? Contraste-se a cena, quase épica, com o papel que me é reservado:
‘É (…) espantosa a cegueira que o Sr. Demétrio representa – e hoje é seu principal porta-voz – ao negar sistematicamente a existência do desequilíbrio no caráter dos artigos e no conteúdo das reportagens publicadas nos veículos da grande imprensa brasileira.’
No seu português peculiar, e numa mesma frase, a jornalista Milena afirma que ‘represento’ uma ‘cegueira’ da qual sou o ‘principal porta-voz’. Será mesmo possível desempenhar simultaneamente esse duplo papel? Não se ensina nem português nem lógica nas escolas de Jornalismo? (E a turma toda que assina cooperativamente o artigo não lê aquilo que subscreve?)
Pela tangente
Milena, Angélica e cia. produzem espuma abundante, atribuindo-me uma lista de coisas que não escrevi. Inexiste motivo para perder tempo com isso. Contudo, o artigo da turma tenta cumprir uma função, que é a de oferecer um ponto de fuga para Muniz Sodré.
No ponto de partida, Sodré escreveu o seguinte:
‘Há uma questão atravessada na garganta de grupos empenhados na defesa das políticas afirmativas da cidadania negra. Trata-se de saber por que os jornalões (nome talvez mais palatável do que `grande mídia impressa´) brasileiros não dão voz alguma a quem se manifesta favorável a medidas como a instituição das cotas ou ao Estatuto da Igualdade Racial’ (‘É necessária uma nova Abolição?’, OI, 27/10/2009).
O trecho significa que os ‘jornalões’ negam totalmente espaços de opinião para os arautos das políticas de raça. Eu retruquei dizendo que isso é mentira – e o desafiei a comprovar a afirmação. No lugar disso, o artigo da turma sai pela tangente – e involuntariamente prova que Sodré estava errado.
Na busca de uma saída ‘clarividente’, a turma mistura artigos de opinião com editoriais e reportagens. A salada tem um sentido para quem chama a imprensa de ‘mídia’, mas deixo isso para o fim. Antes, registro que Sodré referia-se, obviamente, a artigos de opinião em ‘jornalões’ (‘não dão voz alguma a quem se manifesta favorável a medidas como a instituição das cotas ou ao Estatuto da Igualdade Racial’).
As ‘pesquisas acadêmicas’ seríssimas mencionadas no artigo da turma são todas, sem exceção, oriundas de pesquisadores e entidades racialistas. Elas encontram – surpresa! – exatamente aquilo que decidiram previamente encontrar. É de mau gosto traçar um paralelo entre tais pesquisas e as meticulosas investigações dos craniologistas do século 19 que ‘provaram’ a existência de raças humanas e a hierarquia racial?
Mas, como no caso daqueles craniologistas, as marcas da fraude estão impressas nas próprias conclusões oferecidas pelos novos ‘cientistas’ engajados na demonização do jornalismo. Há um único item mencionado no artigo que compara especificamente artigos de opinião contrários e favoráveis às políticas raciais num ‘jornalão’. É o seguinte:
‘(…) examinando-se os textos opinativos da Folha sobre cotas nas universidades, 46,7% posicionaram-se abertamente contrários, número elevado, mas não configuram a totalidade das opiniões.’
Ah, sim? Então ‘46,7%’ (oh, precisão acadêmica!) ‘não configuram a totalidade das opiniões’? E os restantes 53,3% (precisão, rigor!), favoráveis às políticas raciais, ‘configuram’ o que?
Sou uma pessoa curiosa. Se os abnegados pesquisadores conseguiram separar os artigos de opinião da Folha, por que não o fizeram com os de outros ‘jornalões’, como O Globo, O Estado de S.Paulo e o Correio Braziliense? Ou fizeram – e preferiram, prudentemente, esconder as conclusões?
Imprensa e ‘mídia’
Este Observatório da Imprensa, ao menos oficialmente, não é contra a imprensa. Eis o motivo pelo qual usa no seu nome a palavra ‘imprensa’. Há por aí veículos concorrentes, que são observatórios ‘da mídia’. Mídia é a indústria do entretenimento. Imprensa é coisa diferente, cujas referências são o direito à informação e à liberdade de expressão. Nos jornais que se prezam, uma barreira intransponível separa o departamento comercial da redação.
Sodré é contra a imprensa. Ele classifica os ‘jornalões’ como ‘intelectuais coletivos das classes dirigentes’ e ‘cães de guarda da retaguarda escravista’. Como não pode empastelar jornais, limita-se a pronunciar inverdades factuais a respeito deles.
O artigo da turma também é contra a imprensa. Só assim se explica o método, que acolhe, de classificar estatisticamente reportagens como ‘contrárias’ ou ‘favoráveis’ às políticas raciais. Uma coisa é criticar uma reportagem singular, evidenciando um viés ideológico ou uma manipulação da notícia. Algo muito diverso é utilizar a régua dos publicitários para rotular reportagens jornalísticas.
José Sarney usa o mesmo método da turma, quando isso serve a seus propósitos. Há pouco, no auge dos escândalos do Senado, reclamou do predomínio de reportagens ‘desfavoráveis’ a ele mesmo. Agora, é a vez de José Roberto Arruda, o ínclito governador do Distrito Federal, que exige ‘equilíbrio’ dos jornais. Antes deles, no ano do mensalão, os observatórios ‘da mídia’ mensuraram o espaço noticioso ‘favorável’ e ‘contrário’ ao PT – e chegaram à incrível conclusão de que predominavam reportagens ‘desfavoráveis’. A imprensa (digo, ‘mídia’) é mesmo um horror!
Sou curioso, já confessei. Pergunto à turma o que eles sugerem que faça um ‘jornalão’ quando a UnB separa gêmeos idênticos em raças distintas? Ou quando os mesmos jovens candidatos são rotulados como ‘negros’ numa universidade e ‘brancos’ em outra? E quando o então reitor Thimoty Mulholland, da mesma UnB, esconde um inquérito policial no qual se comprovava que o ‘atentado racista’ por ele denunciado era apenas uma briga entre estudantes no alojamento universitário? E, ainda, quando um grupelho racialista com tendências fascistóides invade uma livraria para tentar melar o lançamento de um livro que não presta homenagem a seus dogmas? Todas essas notícias, e tantas outras, devem ser escondidas? Sarney, Arruda, Dirceu et caterva concordam com o princípio, embora prefiram aplicá-lo a outros temas.
Há gente que escreve mensagens de e-mail inteiramente em caixa alta. Eles estão gritando. Há gente que publica abaixo-assinados em espaços consagrados a um debate. Eles estão gritando.
P.S. Este não é um artigo sobre políticas raciais. É sobre imprensa (e linguagem).
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Sociólogo, autor de Uma gota de sangue – história do pensamento racial (SP, Contexto, 2009)