Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Parrhesia, ainda sabemos o que é?

É uma antiga palavra grega que aproximadamente significava liberdade de falar tudo, portanto, de falar o que se pensa, uma espécie de qualidade moral exigida para saber a verdade e, assim, para comunicá-la aos outros. A autêntica parrhesia só existia onde houvesse democracia.

Desde cedo foi percebida a dificuldade de dizer livremente o que se sabe em forma compatível com a liberdade de viver cada qual como lhe pareça. No limite entre ambos, o fantasma da censura. Censurar a liberdade de dizer em nome do interesse coletivo é tema que atravessou dois milênios e ainda nos preocupa. Desde a era moderna, liberdade opõe-se à tutela estatal. Ninguém, a não ser o próprio homem, é senhor de sua consciência, do seu pensar, do seu agir. Aí o cerne da responsabilidade.

Cabe ao Estado propiciar-lhe as condições, mas jamais substituir-se ao ser humano na definição das escolhas e da correspondente ação. Daí a proibição da censura que, como instituição estatal própria dos regimes autoritários, sempre busca justificativas utópicas e sempre frustrantes para educar os adultos, agir como guardião e impedi-los de atividade política (Hannah Arendt).

O revés da medalha é a proteção da privacidade que, para os antigos gregos, era a condenação da parrhesia perversa, a fofoca difamante e sem peias. E, hoje, da palavra que viola a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem. Daí a busca de critérios para delimitar direitos.

A inviolabilidade da honra pessoal

Nos EUA, mormente quando a liberdade de opinião era manifestada pela imprensa, a relação tensional entre o direito à honra e à imagem e os direitos reconhecidos na first amendment (primeira emenda à Constituição) foi bastante debatida. De um lado, o delito por danos à reputação (tradição no common law); de outro, o direito de opinião (free speech) e o direito à liberdade de publicação. Atualmente, o debate foi superado pela Suprema Corte, cujo leading case é o processo New York Times vs. Sullivan, de 1964, que estabeleceu a regra da actual malice. Por ela, funcionários públicos e políticos atingidos em sua reputação ou pessoas privadas cuja atividade repercutisse publicamente (caso Gertz) só teriam seu interesse protegido caso pudessem demonstrar que a informação ofensiva fora feita com dolo. A corte entendeu que um ataque, ainda que difamatório, mas não intencional, deveria ser considerado como uma forma de discurso político, o principal objeto de proteção da first amendment.

Quanto a personalidades públicas, o seu direito de defesa da privacidade deveria ceder diante do direito de liberdade de manifestação, central para o exercício da democracia. A first amendment, pela corte, assume que qualquer cidadão deve ser livre para contribuir para o debate político e que restrições impostas pelo governo e por políticos devem ser vistas com suspeita. O sentido de democracia se sobrepõe soberanamente à eventual difamação de políticos, funcionários de governo ou pessoas com relevância pública. Daí a proteção da liberdade de opinião e manifestação.

Na Alemanha, o posicionamento da Corte Constitucional não é diferente. Conquanto a Lei Fundamental (artigo 5º) limite expressamente o direito à liberdade de opinião e sua manifestação quando em conflito com a inviolabilidade da honra pessoal, a corte recusa essa proteção quando o difamado participa do debate político, excepcionando os casos de calúnia. Princípio semelhante à regra New York Times. Mesmo na Inglaterra, onde a proteção à reputação é maior, as cortes aceitam a proteção à liberdade quando o público tem interesse legítimo em receber a informação e o editor, o dever de publicá-la.

O medo, a arma do tirano

Tais posicionamentos decorrem do regime democrático. O direito de liberdade de opinião é correlato ao de informação, constituinte da cidadania ao lado de outros direitos, como o de votar e ser votado e o de ampla participação política pelo livre debate de livre informação.

No Brasil, ‘a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição’. E o meio constitucional para lidar com abusos é claro: ‘Assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.’ Ou seja, o instrumento não é proibir, nem prévia nem posteriormente. A proibição destrói a liberdade. E, sem ela, destrói-se junto a democracia.

Para os antigos gregos, a parrhesia era aliada à crítica, que estabelecia a singularidade de cada um na igualdade de todos. Era respeitada, até porque exercida sem medo. E o medo era a arma do tirano. Mas, entre tirania e democracia, falar livremente era sempre preferível a ser calado.

******

Advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, autor, entre outras obras, de Introdução ao Estudo do Direito