Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Trabalho de pesquisador sob censura

Uma surpresa desagradável aguardava a historiadora Mary Del Priore tão logo terminou a escrita de Matar Para Não Morrer (Objetiva, 160 págs., R$ 29,90) em que narra o assassinato do escritor Euclides da Cunha por Dilermando de Assis, amante de sua mulher, Anna, em 1909. ‘Como sempre faço, enviei uma cópia do texto para os herdeiros dos personagens para eventuais comentários’, conta ela que, em troca, foi aconselhada a não publicar o livro sob a pena de ser processada – os netos discordavam da forma como foram apresentados determinados fatos e prometiam recorrer a advogados.

Matar Para Não Morrer acompanha a tragédia que vitimou o autor de Os Sertões mas privilegiando Dilermando de Assis, jovem cadete que o alvejou com três tiros. ‘Ele reagiu a um ataque de Euclides, que buscava limpar sua honra. Mesmo assim, Dilermando foi transformado em vilão, rótulo que o perseguiu até o fim’, conta Mary que, durante a pesquisa para o livro, garimpou informações em jornais e autores do início do século, muitos deles, como o jornalista João do Rio, espectadores da cena histórica. ‘Baseei-me em dados comprovados historicamente mas, mesmo assim, Anna Sharp e Tania Andrade Lima, netas de Dilermando e Anna, afirmaram que eu denegria seus familiares.’

Em carta à escritora, Anna Sharp reclamou das descrições físicas e das atitudes comprometedoras dos avós que figuravam no livro – procurada pelo Estado, ela preferiu não se manifestar. ‘Mas é justamente a junção da vida pública com a privada que revela o verdadeiro perfil dessas figuras públicas’, defende-se Mary. ‘No Brasil, os heróis são vistos apenas sob uma chave: a elogiosa.’ Curiosamente, a historiadora recebeu apoio integral de Dirce, filha de outro casamento de Dilermando.

Menos páginas

Mesmo sob pressão – um escritório de advogados de São Paulo enviou uma carta à Objetiva em setembro, solicitando a não publicação da obra –, Mary e a editora decidiram prosseguir com a edição. Atitude distinta da tomada pela Planeta que, em 2007, fez um acordo com os advogados de Roberto Carlos, evitando a abertura de um processo: alegando que sua privacidade havia sido invadida, o cantor queria interromper a venda de Roberto Carlos em Detalhes, biografia não-autorizada de Paulo César de Araújo, o que de fato aconteceu.

Trata-se do caso mais notório da delicada relação entre editoras e biógrafos com descendentes de biografados. ‘Não existe mais a figura do censor, de tesoura na mão. Mas existe uma forma de censura explícita, que proíbe a jornalistas, pesquisadores, historiadores e jornais, a publicação de matérias e entrevistas, e a censura mais implícita, que se configura em mecanismos repressivos que se exercem de maneira dissimulada na sociedade’, comenta Mary, estendendo seu comentário à censura sofrida há 143 dias pelo Estado de S.Paulo, proibido por liminar do Tribunal de Justiça do Distrito Federal de publicar dados da Polícia Federal acerca de negócios do empresário Fernando Sarney.

‘Chegamos a recusar a biografia do Roberto Carlos, escrita pelo Paulo Cesar Araujo, por medo da reação do artista. Também preferimos não fazer a de Ademar de Barros e a do Torquato Neto’, conta Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record. ‘Toda biografia que vamos publicar é lida com lupa por nosso advogado. Em geral temos mais medo de personagens secundários do que do próprio biografado.’

O problema está em uma brecha no Código Civil que possibilita descendentes de biografados embargarem obras que julgam caluniosas. ‘Assim, como consequência de uma legislação equivocada (única no mundo), netos de personagens históricos têm o direito de censurar e cercear o trabalho de historiadores relativo a fatos passados há mais de um século’, reclama Roberto Feith, da Objetiva. ‘Nossa legislação absurda está matando um gênero literário que até pouco tempo atrás revelava-se dos mais promissores no Brasil’, completa Luciana.

A esperança está em um projeto de lei apresentado pelo deputado federal Antonio Palocci (PT-SP) no ano passado, que propõe alterar o artigo 20 da Lei Federal nº 10.406, justamente o evocado pelas famílias de biografados que se julgam maltratadas.

O projeto, porém, ainda aguarda espaço na agenda para ser votado na Câmara Federal. Enquanto isso, o trabalho de biógrafos continua ameaçado – a fim de evitar maiores confusões, o livro de Mary Del Priore foi publicado sem nenhuma ilustração. ‘Meus leitores também devem ter notado que a obra saiu mais enxuta, com menos páginas que as outras, e com uma linguagem mais telegráfica em alguns trechos.’

Na espera

O projeto de lei apresentado pelo deputado federal Antonio Palocci (PT-SP) propõe a inclusão de um parágrafo ao artigo 20 da Lei Federal n.º 10.406, que permite proibir a divulgação de dados que prejudiquem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade das pessoas. A modificação torna mais seguro o trabalho de biógrafos sérios: ‘É livre a divulgação de informações biográficas sobre pessoas públicas ou que tenham participado de acontecimentos de interesse da coletividade.’

Como está hoje, a lei não contempla a diferença entre o direito de privacidade de pessoas públicas e de privadas, e a proteção para que o autor possa escrever sobre figuras conhecidas sem o receio de haver punição.

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Consagração não evita situações insólitas

Autor de biografias consagradas, como as de Assis Chateaubriand e Paulo Coelho, o escritor Fernando Morais já enfrentou situações insólitas por conta da desproteção legal sofrida pelos biógrafos. ‘O juiz Jeová Sardinha, de Goiânia, me proibiu em 2005 de referir-me publicamente sobre meu próprio livro, Toca dos Leões, sob pena de pagar R$ 5 mil de multa a cada transgressão – felizmente derrubada em instância superior’, conta ele, acusado de calúnia pelo deputado Ronaldo Caiado. ‘A censura fardada da ditadura vem sendo sorrateiramente substituída pela censura togada.’

E os descendentes parecem não ter limites – Morais conta que os netos de Chateaubriand entraram com uma ação na Justiça do Rio pedindo para ver o copião do ainda inédito filme Chatô, o Rei do Brasil, de Guilherme Fontes, cuja produção se arrasta desde 1995. ‘O silêncio da sociedade em muitos casos acaba estimulando atos como a mordaça ao Estadão.’

Já Ruy Castro e a editora Companhia das Letras enfrentaram uma pressão econômica na publicação de Estrela Solitária, biografia de Garrincha. ‘Um dos advogados das filhas do jogador telefonou para a editora no dia seguinte a uma matéria do Fantástico comigo – e a uma semana da saída do livro nas livrarias (ou seja, ninguém ainda o tinha lido) – ameaçando com um processo por difamação. Mas que ‘retirariam o processo’ caso houvesse acordo equivalente a US$ 1 milhão, na época. Ou seja, havendo dinheiro, pode-se difamar à vontade.’

O livro, lançado em novembro de 1995, foi proibido um mês depois e ficou um ano sem poder ser reimpresso ou vendido. Foi liberado em novembro de 1996, mas o processo se arrastou pelos dez anos seguintes – só terminou em 2006, quando as herdeiras, contrariando os advogados, propuseram um acordo mais em conta. (Ubiratan Brasil)

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Repórter do Estado de S.Paulo