Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para o jornalista, o combate continua

Do sossego da varanda de sua casa na capital mineira, tendo como trilha sonora o longo canto de seu canarinho belga, o combativo e resistente jornalista Carlos Olavo da Cunha Pereira abriu o verbo sobre o jornalismo feito na atualidade pela grande imprensa. Relembrou os tempos áureos e a razão do sucesso do semanário O Combate, idealizado e dirigido por ele no final da década de 1950. A vida desse memorável periódico se deu até 31 de março de 1964, dia em que foi ‘empastelado’ em decorrência do golpe que levou à queda do então presidente João Goulart. Do auge dos seus bem vividos 86 anos, Carlos Olavo rememorou algumas histórias do incômodo e oportuno periódico que denunciava o latifúndio, a grilagem de terras, as mortes por pistolagem, as greves de trabalhadores urbanos e defendia abertamente a reforma agrária.

Durante a conversa, opinou sem medir as palavras, entre críticas e risos, sobre a subserviência dos jornalistas atuais ao capital do dono do veículo, a animosidade destes profissionais para encarar o sistema e o papel das escolas de Jornalismo na contemporaneidade. Afinal, para Carlos Olavo Pereira da Cunha não existem assuntos proibidos. Apresentações feitas, confira, a seguir, todos os detalhes desta conversa, realizada no dia 1º de dezembro de 2009.

‘Religião para conter revolta’

Como era fazer jornalismo na sua época e o que você vê de diferente hoje?

Carlos Olavo da Cunha Pereira – Eu acho que o jornalismo tem principalmente duas escolas: a americana e a européia. A tradição do jornalismo brasileiro é o jornalismo engajado, mas o que impera hoje é o chamado jornalismo objetivo, mais de influência da escola americana. O jornalismo feito hoje é diferente do que nós estávamos acostumados a fazer antigamente. Não é o caso de um ser superior ao outro; acho que é um problema de natureza. Chega a um ponto tal que a diferença se dá no fundo em relação à qualidade. No O Combate, por exemplo, meu jornalismo era engajado desde o início, enraizado nas questões dos posseiros, da reforma agrária, da população, em defesa dos direitos humanos, contra a criminalidade. Especialmente o crime de homicídio que proliferava naquela região (Vale do Rio Doce) de uma maneira impressionante.

Convidaram-me para novamente fazer jornal em Governador Valadares (em 1994) e eu não aceitei por dois motivos. Primeiro, porque não tenho mais idade para fazer aquele jornalismo sacrificado; segundo, porque a situação econômica e social é completamente diferente. Querer construir um Combate na atual situação de Governador Valadares não cabe. Não cabe! Pode até fazer um jornal mais sério, de denúncia e tal. Mas a questão é que o jornalismo de hoje é intimamente ligado aos interesses da empresa. O nosso jornalismo não era ligado à empresa, mas sim, a um objetivo, a uma ideia, a uma causa. Jornalismo hoje é uma profissão que eu não teria coragem de exercer porque tem que cifrar no interesse do dono do jornal. Tudo que contrariar o dono não serve; vai pra cesta de papel (lixo). O jornalista hoje quase perde a sua personalidade. A gente vê grandes jornalistas perfilando algumas teses que você sabe que não é da natureza deles. Fico vendo, por exemplo, na Bandeirantes, o Joelmir Beting, o (Ricardo) Boechat, a Ticiana (Villas Bôas)… que são bons jornalistas, se meterem na ingrata tarefa de tomar posição contra os Sem Terra (MST). Por que fazem isso? É que o proprietário da emissora é grande proprietário rural. Essa é a verdade!

Como foi reingressar no jornalismo depois do exílio?

C.O.C.P. – Eu fiz jornalismo depois que voltei do exílio, mas foi em órgão oficial. Eu fazia de acordo com o interesse do Estado. Mas, mesmo assim, é perigoso porque passa também a ser interesse do governo. O jornalista muitas vezes tem que abandonar o seu ponto de vista. Mas eu fiz um jornalismo inteiramente livre disso. Durante três anos trabalhei na cobertura dos municípios mineiros, que naquela época eram 823. Todo dia sai na última página a história de um município de Minas. Então, eu tinha que levantar informações e redigir os textos. Mas, mesmo assim eu falava de um jeito mais crítico, como por exemplo, sobre a importância da religião nos municípios mineiros. Ao redor de toda igreja tem uma cidade. Diziam que isso era da índole do mineiro. Eu não agüentei essa história. Aí eu disse: ‘Espera aí, companheiro!’ Não é por causa de religião que o povo construía a cidade em torno da igreja, que era edificada pelo coronel, dono das terras. Era uma maneira do coronel atrair mão-de-obra pra sua fazenda. Quando vinha o padre rezar a missa, celebrar casamento, batizado, fazer confissões e tal, aglutinava o povo ali. Dessa forma, o coronel tinha gente pra fazer o que quisesse na hora que precisasse. Aí, pronto! O povo vinha me cobrar por dizer isso e eu falava: ‘Não adianta esconder. No futuro, vão desmascarar a gente.’ Essa que era a verdade! A religião é uma maneira de conter os impulsos de revolta, de subordinação, da rebeldia natural do ser oprimido. E a religião apaziguava isso.

‘Parece que vivem no mundo da lua’

Bom, enfim, sou suspeito pra falar de jornalismo porque o tipo que eu fiz é aquele que hoje não se pode fazer mais. Eu sei das dificuldades que eu tinha pra fazer aquele jornal (O Combate). Angariava publicidade na rua, ia de porta em porta do comércio conversando para poder sustentar economicamente o jornal. No final, o jornal se transformou num meio de comunicação, era um bom veículo e todo mundo lia e o comerciante tinha interesse de anunciar. Mas no início era bem difícil. Tinha que contar os centavos pra pagar as despesas. Hoje já não dá pra fazer isso mais. Eu até cheguei a fazer aqui em Belo Horizonte um jornal de bairro com o meu filho. Mas era um jornal que não tinha alma, não tinha sentimento porque tinha que agradar o anunciante. Aí não dá!

O meu jornalismo está superado pela situação sócio-econômica do mundo. Tem que haver uma mudança econômica, social e, portanto, política, para que se possa fazer um verdadeiro jornalismo. Para que o jornalista ponha ali, em letra de forma, o que ele pensa. Porque hoje ele não pode fazer isso. Quando um ou outro começa a sobressair eles consomem com ele rapidinho. Desaparece. É isso!

Apesar da atual conjuntura social, econômica e política não ser tão favorável para existirem outros Combates, você acha que ainda tem algumas brechas na mídia comercial para o jornalista que é interessado em fazer um jornalismo engajado? O que falta para isso tornar-se uma atitude mais permanente dos profissionais? Está faltando o que para esses nossos jornalistas?

C.O.C.P. – Eu fico assustado com a nossa imprensa porque ela fica separada do povo. Eles fazem um jornalismo de costas para o povo, não refletem nem interpretam o sentimento do povo. A força do meu jornal (O Combate) é que ele refletia o que o povo sentia. Liam as matérias e viam o sentimento deles manifestado ali. Hoje você vê que a imprensa está para um lado e o povo para o outro. Eles atacam o Lula, mas o povo está todo com o Lula. Então, como é que faz? A imprensa era contra as Diretas Já, mas o povo estava na rua gritando por elas. Várias pessoas me ridicularizavam como palhaço porque eu subia no pirulito da Praça Sete (em Belo Horizonte) e defendia a Campanha do Petróleo, que a imprensa era contra. Mas o monopólio estatal venceu e foi o povo quem fez vencer. Falta sensibilidade política e social dos jornalistas. Isso é falta de vivência. Eu, por exemplo, pego o jornal e o leio mais pela notícia porque a parte opinativa não me interessa. Tem algum articulista ou outro que me interessa, como é o caso do Clóvis Rossi, apesar de muitas vezes eu discordar dele. Gosto também do Elio Gaspari, mas não gosto da Míriam Leitão. Dela, não tem jeito. Não engulo; não vai. De forma que tem revista que nem pego pra ler. Não leio a Veja por uma questão de higiene mental. Minha revista é a CartaCapital. Apesar de também discordar dela em algumas coisas, para mim é a que mais reflete o sentimento e a hora presente. Não adianta a gente ficar contrariando a vontade do povo. Se o povo quer uma coisa, não podemos ficar do outro lado. Não tem um jornal desta grande imprensa que apóia o Lula. E o Lula é o quê? É o consenso nacional. Por aí você vê bem o distanciamento deles da realidade. Parece que eles vivem no mundo da lua, em outro planeta, em outra esfera. Dá a impressão disso! Mas eu acho que não. É porque eles abdicam de suas opiniões para agradar o dono da empresa que trabalham. O Lula disse uma vez que sofre de azia ao ver esse jornalismo.

‘Sou muito conciso’

Hoje, muitos jornalistas apuram os fatos diretamente da redação, fazendo uso apenas do telefone e da internet. Qual a sua opinião sobre essa prática?

C.O.C.P. – Repórter de redação é uma contrafação. Isso não pode acontecer. Lugar de repórter é na rua; no fato, para poder reportar. Pegar informação na internet? Isso não é ser repórter. É um redator. Um híbrido. Essa que é a verdade!

Conheci grandes repórteres. Um dos que mais admiro é o Edgar Morel, pois era um homem que ia no fato. Ele escreveu sobre a Revolta da Chibata. Para isso, foi conversar com o João Cândido, foi na cadeia, foi no advogado, pegou tudo. Os meios de comunicação se sofisticaram de tal forma que desnaturaram o repórter. Por tudo isso é que hoje as reportagens são muito falhas. Não há nada como você ir, ver e vivenciar os fatos nos seus detalhes. Tem que ter percepção e acuidade para enxergar o que é principal ali. Isso você só adquire na vida, na prática, indo lá. Da redação não tem jeito.

No geral, como você avalia o profissional que está saindo das faculdades de Jornalismo hoje?

C.O.C.P. – Eu acho que o jornalismo é uma profissão da natureza da pessoa. A escola pode até dar à pessoa certo conhecimento das técnicas de jornalismo, mas não criar nela a alma de jornalista. Eu por exemplo, nunca estive em escola de Jornalismo. Minha escola foi luta social e é aí que eu entendo de jornalismo. Temos que valorizar a escola. Sem dúvida, é bom, pois dela teremos um grupo de jornalistas com o conhecimento mais aprofundado, mais minucioso das técnicas de jornais, do que é notícia, do que é crônica, do que é reportagem, do que é coluna. Porém, a prática é indispensável. Se não tiver prática não tem jeito. E a prática é na rua, no fato; o repórter nasce lá. Agora, o que fica na redação e só escreve é redator, não é repórter. Quando eu fazia reportagem, fazia apuração, redação, publicidade… tudo. A vida me impôs isso. Eu fazia também notas de rádio para O Combate No Ar (programa apresentado por Carlos Olavo na rádio Por Um Mundo Melhor, no início da década de 1960). O rádio era o quente – tinha que se dizer tudo em poucas palavras. Tem muita gente que escreve comprido. Eu, não. Sou muito conciso para escrever. Você pode ver pelo livro (referindo-se ao romance Nas terras do rio sem dono).

‘Hoje é um tanto quanto artificial’

Qual a sua opinião sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal de derrubar a exigência do diploma de Jornalismo para exercer a profissão?

C.O.C.P. – Eu sou da opinião das entidades jornalísticas. Acho que é bom ter diploma. A escola de Jornalismo pode preparar o sujeito para a prática porque o conhecimento vem da prática. É uma interrelação íntima.

Para encerramos esse bate-papo, o que é jornalismo para você?

C.O.C.P. – A meu ver é uma profissão necessária porque seria o elo de ligação com o povo. Ele é que transmite o sentimento do povo e dá repercussão em outras esferas do sentimento. É o jornalismo da abolição: José do Patrocínio, Lopes Trovão. Eles auscultavam a vontade do povo e faziam um jornal abolicionista. Hoje se faz jornalismo um tanto quanto artificial, tal como Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil. Quando sai alguma coisa mais ou menos alinhada com o povo, o jornal esgota. Será que eles não percebem isso? Se continuar por esse caminho acaba perecendo. Afinal, quantos jornais já desapareceram?

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Jornalista, professora universitária da Universidade Vale do Rio Doce (Governador Valadares, MG) e mestranda em Gestão Integrada do Território pela mesma instituição