Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O verdadeiro espírito natalino

Abominável essa histeria coletiva de fim de ano. Pergunto-me até que ponto essa compulsão por compras e comilança condiz com o espírito natalino. Por mim, se pudesse, hibernaria nesse período – de bom grado. E não pensem que estou de mal com o mundo, que sou do tipo desajustado ou insensível para encarar assim de forma, como direi, pouco ortodoxa essas magnas datas da humanidade. Apenas não consigo compartilhar com a mesma euforia dessa predisposição à confraternização compulsiva, com sua conotação mercantilista cada vez mais ostensiva. Ora, para celebrar a vida, nossas relações interpessoais e as dádivas divinas, não há hora nem data e muito menos se faz necessário esse ritual neurótico do qual não conseguimos escapar.

Até entendo que somos parte de um grande mercado de consumo, em que é preciso faturar para que a fila possa andar, o que nos deixa à mercê de toda espécie de apelo. Não há limites para a grande farra consumista que o Natal enseja, a ponto de o hábito da troca de presentes ter se tornado quase que obrigatório, para provar um afeto que no dia a dia nem sempre transparece. Tudo bem que há momentos em que é preciso fazer uma pausa para estreitar nossos laços afetivos de um modo geral, mas haja paciência para conviver com a verdadeira coerção exercida pela mídia, ao vincular a comemoração a mimos e agrados materiais que muitas vezes sequer estamos em condições de proporcionar.

Reflexão, espiritualidade

Sou do tempo em que o Natal era monopólio da criançada, que mesmo já não acreditando não deixava de experimentar um misto de respeito e temor quando se via cara a cara com o bom velhinho. Aquele sim era um ritual mágico. O enorme (e legítimo) pinheiro engalanado, sob o qual uma infinidade (pelo menos assim me parecia) de presentes aguardavam a chegada da indefectível figura, cuja presença o alarido dos vira-latas normalmente precedia – nesses trópicos, trenós puxados por renas são inviáveis mesmo na imaginação.

Com o coração em sobressalto, nós, moleques tão intrépidos e destemidos nas travessuras, nos refugiávamos nas barras das saias maternas, entre excitados e apavorados ante a perspectiva de encarar de perto ‘o barbudo’, que é como o chamávamos a prudente distância. Pode soar piegas, mas essas lembranças estão entre as mais pungentes nessa minha atribulada jornada que já teve dias melhores.

Tudo bem, talvez seja por isso que não vejo motivo para uma alegria que está longe daquela de outrora, na companhia de tantas pessoas queridas, a maioria das quais já em outra dimensão. Sobretudo minha avó paterna, com quem vivi parte de minha infância, em Agudo, um lugarejo de predominante descendência alemã, em terras gaúchas, e cuja doce figura às vezes revejo em sonhos. Era em sua ampla casa literalmente na roça que nossa numerosa família se reunia para celebrar natais que guardarei para sempre na memória, junto aos rostos amados dos que marcaram aqueles tempos inesquecíveis.

Mas, como diz o estribilho daquela antiga canção, o que passou, passou. Ao contrário do que possa parecer, não sou saudosista e nem choro pelo que ficou para trás, por melhor que tenha sido. Afinal, a vida continua e sempre há novas experiências que valem a pena ser vividas. Só não consigo fingir um contentamento forçado, me alegrar com uma festa que vai ficando cada vez mais artificial e descaracterizada, com a ajuda da mídia. Cabe a nós, portanto, resgatar o verdadeiro sentido dessa celebração, que deveria ser consagrada muito mais à reflexão e à espiritualidade do que à submissão aos valores materiais e mundanos que hoje prevalecem.

Um feliz 2010 a todos.

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Jornalista, Santos, SP