Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Diálogos da contracultura brasileira

No final dos anos 1960, com o país governado por uma ditadura militar, o Brasil tinha pouco, ou quase nada, de jornalismo de resistência. Com a fase de ‘fechamento’ do país, a partir do AI-5, a indústria cultural atendia a um segmento da sociedade que estava avesso à situação política e social daquele contexto, mas que gozava dos privilégios de consumo obtidos com os primeiros tempos de progresso econômico, onde o país apresentava números expressivos de crescimento, porém nem tudo soava como milagre. Não havia espaço para a contestação da sociedade, que sofria com uma censura violenta imposta pelo regime. A imprensa e a própria produção cultural do país sofriam com o cerceamento da liberdade de expressão, em uma violência que não saía nas páginas de jornal, nem tampouco era dita na televisão, que começava a se tornar um veículo de massa.

A ditadura era disfarçada pela publicidade ufanista da época, que exaltava o crescimento vertiginoso do país como fruto do governo autoritário. Alguns veículos de comunicação que obtiveram vantagens com a ditadura, passaram a oficializar esse discurso, servindo como instrumento de propaganda política que consolidava a reprodução e ampliação das relações materiais e sociais de produção, alimentando o desejo de consumo da classe média e elite, o que servia como uma forma eficaz para esconder a violência usada pelo regime repressor.

Nesse período (1968), as primeiras canções de sucesso de uma dupla baiana começaram a mostrar uma música voltada ao discurso de ‘raízes brasileiras’, mantendo, segundo os próprios compositores, a linha evolutiva da bossa nova, mas aplicando às composições muito da influência das músicas psicodélicas da contracultura americana, com a inclusão de guitarras elétricas, um elemento mítico da cultura jovem estabelecida a partir do pós-guerra, mas também visto por parte dos intelectuais brasileiros como um símbolo do imperialismo.

A verdadeira sensibilidade estética

A proposta do movimento denominado tropicalismo e encabeçado por esses dois compositores e cantores era a união de elementos da jovem guarda com a bossa nova, além do resgate de elementos da cultura nacional sem pré-conceitos para definir o que seria de baixa ou alta cultura. Assim, Caetano Veloso e Gilberto Gil ganharam, inicialmente, projeção nacional com as canções Alegria, Alegria e Domingo no Parque, respectivamente. Caetano e Gil, ao formatarem o movimento tropicalista como a versão tupiniquim do som estrangeiro, o rock, apresentavam um novo estilo musical que não se limitava apenas à mistura de ritmos regionais com o rock, mas se tornava uma espécie de ‘mosaico’ que continha inúmeras influências reunidas na proposta de aliar o exotismo do folclore brasileiro com as mais variadas manifestações, seja o carnaval, a música brega, a literatura de cordel, e o próprio rock. Essa busca por incorporar na música uma linguagem que fosse jovem, mas que preservasse aspectos da cultura popular, naquele contexto, é a prova de que o tropicalismo estava em sintonia com o espírito dos anos 60 que era a de levar adiante todo tipo de experimentação.

Bar (2005) reitera que o tropicalismo foi importante por trazer novas informações sobre cultura jovem para o público brasileiro, tendo vínculo com outras produções radicais em linguagem como, por exemplo, o cinema novo de Glauber Rocha, em especial com os filmes Terra em Transe (1967) e depois Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1968); o teatro autoral e inovador de Zé Celso Martinez Corrêa, nas peças Rei da Vela (1967) e Roda Viva (1968), nas instalações artísticas de Hélio Oiticica, cuja instalação Tropicália batizou o movimento, além da influência dos ideais modernistas de 1922, com o conceito de antropofagia. Enfim, para o tropicalismo, o essencial era estabelecer contato com a massa consumidora através dos mass media produzindo arte sem rótulos ou limites, consolidando como símbolo maior a expressão estética popular e irreverente de Abelardo Barbosa, o Chacrinha. ‘E os jovens artistas tropicalistas o tomam como a expressão direta, em estado bruto, da verdadeira sensibilidade estética do povo brasileiro’ (BAR, Décio: 2005, p. 56-57).

Uma ‘radiografia’ precisa do período

Em termos de divulgação do tropicalismo, o grande trunfo foi usar a televisão para difundir a proposta estética do movimento. As primeiras apresentações no III Festival de Música Popular da TV Record e, depois, com maior ênfase no programa da TV Tupi, chamado Divino Maravilhoso, que era produzido com roteiros anárquicos do poeta e mentor do movimento Torquato Neto, além de Caetano Veloso e Gilberto Gil, definiram para todo o território nacional o que seria a contracultura abaixo da linha do Equador.

A idéia de se apresentar com roupas coloridas que misturavam a indumentária hippie com peças de vestuário futurista (aliada ao deboche nonsense do grupo Os Mutantes) causou um choque para quem estava acostumado a ver na televisão apresentações ‘mais comportadas’. ‘A estética teve grande importância, porque deu visibilidade ao movimento quando ele chegava à TV por meio dos festivais’ (MELLO, 2005: 55).

O programa tropicalista Divino Maravilhoso, exibido na TV Tupi, teve vida curta, mas marcou a comunicação brasileira daquele período, pois consistia em um espetáculo caótico com provocativos happenings entre público e os convidados. Essa idéia de apropriação dos meios de comunicação de massa era inovadora para os parâmetros brasileiros e mostrava que os tropicalistas estavam atentos às transformações provocadas pelos artistas da contracultura que usavam a mídia para divulgar suas obras. A comunicação de massa, que começava a despontar no Brasil no final dos anos 60 com a crescente popularização de aparelhos de televisão e a própria utilização dessa tecnologia de comunicação pelo regime militar como um ‘integrador’ nacional serviu para o contato da sociedade intelectualizada com os mecanismos de divulgação da indústria cultural. Motivado por essa nova condição, o movimento tropicalista soa como uma ruptura na cultura brasileira e acaba por despertar a própria imprensa alternativa que se posiciona a margem da imprensa comercial, essa censurada ou aliada ao regime do período. Mesmo sem o alcance dos grandes veículos de mídia, a imprensa marginal ou alternativa como ficou conhecida, proporcionou uma ‘radiografia’ precisa do período, trazendo à tona discursos e reivindicações que não tinham espaço na grande esfera mediática.

‘Artimanha, fusão de manha & arte’

Os jornais desse período receberam o termo de imprensa marginal, por estarem à margem dos grandes periódicos da época. Durante a ditadura militar, toda uma produção cultural buscou novos espaços de comunicação além dos estabelecidos pela ordem repressora do governo que oprimia com censura e perseguição violenta a quem divulgasse uma crítica não apenas ao regime, mas que contestasse o modelo econômico. Se analisarmos a produção cultural da década de 70, encontraremos o sentido de ‘à margem’ não apenas nos jornais, mas na literatura também, com a produção ‘mimeográfica’ de Chacal, Charles Peixoto, e também na literatura alternativa de Waly Salomão, Ana Cristina César, Paulo Leminski e Torquato Neto.

Muitos desses escritores transitaram por vários territórios da cultura marginal e da própria imprensa alternativa, alguns oriundos do movimento tropicalista. Torquato Neto é um exemplo disso. De mentor do movimento e compositor de diversas canções e roteiros, o poeta piauiense atuou em filmes B de diretores como Ivan Cardoso, além de escrever em pequenos jornais alternativos como Flor do Mal, ao lado do jornalista Luis Carlos Maciel. O Torquato Neto ‘jornalista’ era um defensor ferrenho de idéias libertárias que iam além do próprio movimento tropicalista. Autor de diversas polêmicas na coluna ‘Geléia Geral’ (nome de uma de suas canções tropicalistas imortalizadas por Gilberto Gil) no jornal Folha da Tarde no início dos anos 70, Torquato Neto talvez seja o grande intérprete da situação cultural que o país passava no período Médici. Sentindo-se acuado pela censura e alienação impostas por um regime que se apoiava na própria mídia comercial, esta sustentada pelas vantagens do milagre econômico, Torquato utilizou a comunicação como instrumento de ‘guerrilha’ cultural, fazendo desde jornais nanicos a filmes B. Ou seja, num momento histórico de repressão e fechamento, a cultura que estava à margem do sistema deveria transitar pelos mais diversos campos de atuação. Hollanda (2001) destaca a movimentação típica dos poetas:

‘[…] Eles invadiram as ruas, teatros, exposições, ganharam espaço na imprensa nanica, investiram pesado na venda de mão em mão, no contato direto entre o poeta e seu leitor. Criaram sua forma particular de comunicação com o público: a `artimanha´, produto etimológico da fusão de manha & arte […] Nesse pique, crescem a lista e a novidade das revistas e das coleções, além de algumas batalhas ganhas na grande imprensa, como as editorias do Suplemento Literário da Tribuna da Imprensa (por Maria Amélia Mello) e do Em Cartaz, de Curitiba’ (HOLLANDA, Heloísa Buarque de, 2001: 160 -162).

O ‘guru’ da contracultura

Toda essa efervescência cultural precisava de espaço para divulgação e os meios mais integrados a esse espírito anárquico proveniente do tropicalismo, e que agora encontrava ‘voz’ em diversas manifestações artísticas, foram os jornais de pequena tiragem, os jornais alternativos. Durante os anos 70, circularam no Brasil inúmeras publicações de tamanho tablóide, que se caracterizaram pela oposição ao regime militar, ao modelo econômico, à violação dos direitos humanos e à censura, além de divulgar novas filosofias de vida e a produção cultural da época.

A idéia de propor uma estética pop e moderna, além de apontar novos caminhos para a arte nacional são ações tropicalistas que visavam romper e transgredir com a cultura institucionalizada no Brasil dos anos 60. O movimento que aliava elementos modernos com o arcaico, em canções como Alegria, Alegria e Tropicália, onde inúmeras palavras sucedem seus versos, trazia uma observação fragmentada do cotidiano, um discurso sem recursos idílicos onde a poética da canção está mais vinculada às manchetes de jornais do que ao lirismo da bossa nova. Segundo Carmo (2002), os versos são como diversos fotogramas que parecem se relacionar por acaso, mas que podem, através da imaginação, elaborar um novo sentido subjetivo a cada um. O exemplo em Alegria, alegria é a palavra ‘sol’. Ela pode definir o ‘Verão do Amor’ difundido pelo movimento hippie americano no ano de 1967, como também o jornal carioca O Sol, de cunho alternativo, em formato tablóide, que ‘fazia a cabeça’ da juventude e existiu durante o auge do movimento tropicalista.

O Sol, mesmo com uma vida efêmera (setembro de 1967 a janeiro de 1968) apresentava uma linguagem diferenciada dos outros jornais de grande tiragem, marcando uma época junto ao Jornal dos Sports (veículo que também apostava em uma linguagem jornalística crítica e com pautas irreverentes) e talvez abrindo espaços para que dois anos depois, em 1969, aparecesse o jornal O Pasquim.

O Pasquim foi um jornal irreverente e anárquico que surgiu de uma ideia de Tarso de Castro e tinha como enfoque um jornalismo que esbanjava inteligência e crítica, causando um furor no país digno de veículo de comunicação de massa. Entre os jornalistas que formaram o Pasquim estava Luis Carlos Maciel, espécie de ‘guru’ da contracultura brasileira. Maciel assinaria a coluna ‘Underground’, considerada a primeira ‘voz’ da contracultura nos veículos de comunicação do Brasil.

150 jornais alternativos

Na ‘Underground’, o leitor tinha acesso ao que acontecia no cenário do rock, mas também lia artigos sobre drogas, esoterismo, sexo, filosofia, entre outros temas não publicados na grande imprensa. Em termos de produção cultural do Brasil, Maciel divulgaria em seus textos, principalmente, a produção dos representantes da Tropicália e dos artistas egressos do movimento e já considerados marginais, após o exílio de Caetano e Gil. ‘Quando se fala de Brasil, faz muitas referências ao grupo de artistas marginais representados por Waly Salomão, Hélio Oiticica, ou os mais conhecidos, como Caetano Veloso e Gilberto Gil’ (OLIVEIRA, 2007).

O termo marginal definiria toda uma linha mais radical no campo artístico e cultural que surgiu após o ‘recesso’ tropicalista com o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil em 1969. Integrantes do movimento tropicalista, como o músico Tom Zé e o poeta Torquato Neto receberam o estereótipo de ‘malditos’ por estabelecerem uma nova expressão artística distante de uma arte engajada em termos de contestação política como os setores intelectuais exigiam no período. Assim, os dois personagens do movimento tropicalista passam a ser vinculados a nomes como os músicos Jards Macalé, Walter Franco, Jorge Mautner; os poetas Waly Salomão, Chacal, Paulo Leminski, Ana Cristina César, Cacaso, e cineastas como Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Ivan Cardoso, entre outros, que recebem a alcunha de ‘marginais’. Conforme Heloísa Buarque de Hollanda (2001), o termo marginal, para os escritores, por exemplo, é ambíguo desde o início porque oscilava uma variedade de sentidos: marginais da vida política do país, marginais do mercado editorial, e, sobretudo, marginais do cânone literário.

Um dos veículos pioneiros da imprensa alternativa foi o jornal Flor do Mal, que contou com os editores e colaboradores Luis Carlos Maciel, Torquato Neto e Rogério Duarte. Flor do Mal é uma experiência radical na imprensa, tendo como objetivo atingir o leitor presente na contracultura brasileira, os hippies tupiniquins conhecidos como ‘desbundados’, termo proveniente de uma gíria inventada no Brasil para aqueles que abandonavam a luta armada contra a ditadura e se dedicavam à vida alternativa associada aos movimentos de contracultura (AMORIM, 2007).

Outros periódicos marginais surgiram após o Pasquim e Flor do Mal, como: Presença, Movimento, Beijo, Bondinho, Ovelha Negra, Luta & Prazer, Opinião, Tribo, Soma, O Inimigo do Rei, Lampião, entre outros. De 1964 a 1980 foram contabilizados quase 150 jornais que circularam dentro do sistema de imprensa alternativa levando a pauta discussões originárias dos movimentos de contracultura e que durante os anos 70 discutiria temas como política, vida comunitária e os direitos das minorias (STRELLOW, 2008).

Considerações finais

O final da década de sessenta foi um período de intensa movimentação social o que representou o surgimento de novas propostas para a própria produção artística e cultural. A experiência tropicalista, em seus anos de divulgação através dos meios de comunicação (1967-1969), resultou na quebra de paradigmas não apenas da música como também da cultura brasileira daquele período.

Após a decretação do AI-5 em dezembro de 1968, e com o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, praticamente a Tropicália acabou. Os remanescentes que ficaram no país passaram a ser identificados como pós-tropicalistas e dentre eles, estava Torquato Neto, mentor do movimento e que acabaria envolvido com diversas áreas da produção cultural conhecida como marginal.

Essa proposta de aglutinar forças para uma produção alternativa teve seu auge na primeira metade da década de 70, portanto, também, seria ‘combativa’ à propaganda governamental difundida como milagre econômico pelo governo repressor e violento do presidente Emílio Médici. Torquato ao criar uma espécie de ideologia tropicalista onde propunha uma estética fragmentária que culminaria em composições com citações e ‘imagens’ típicas de um roteiro de cinema ou de um noticiário, não apenas adicionava novos elementos à produção de canções populares no país, como também abria espaço para que o estilo de vida alternativo, tão em voga com o movimento hippie, fosse divulgado por outras áreas, seja com as artes plásticas, o teatro, o cinema e a própria imprensa.

Ao escrever a coluna ‘Geléia Geral’ e produzir jornais alternativos, ele estava criando o elo entre os ideais tropicalistas, de comunicar uma nova identidade cultural para o Brasil, sem mais limitações estéticas, com a produção de jornais que buscassem uma abertura maior para as reivindicações que eram originárias das ruas e culminavam com novas formas do fazer política, herança maior da contracultura, e que não encontravam espaço nos periódicos comerciais censurados pelo governo.

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Jornalista, Bagé, RS