Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Interpretações que distorcem

‘Brasil abriga um terço dos portadores de HIV da América Latina’.

Este é o título da matéria publicada no sítio da Folha Online (www1.folha.uol.com.br/folha/
mundo/ult94u78695.shtml
) baseada em distribuição da France Presse.

‘Com cerca de 400 milhões de habitantes, a América Latina tem por volta de 1,7 milhão de pessoas portadoras do vírus da Aids (0,43% da população).’

Originalmente, a matéria apontava que seriam mais de 600 mil os portadores de HIV no Brasil. Mas, em nota de correção, a Folha Online informa que o número oficial de infectados é de 310.310 (www1.folha.uol.com.br/folha/
mundo/ult94u78701.shtml
).

Mas digamos que fossem mesmo os 600 mil: cerca de 36% dos casos.

Qual o tamanho da população do Brasil? Uns 170 milhões? Numa conta rápida, 170 que dividem 400, dá: 42,5%. Proporcionalmente à população há menos casos de HIV positivos no Brasil. A afirmação ‘Na América Latina, o Brasil é o país que proporcionalmente tem mais pessoas contaminadas com o vírus da doença, com um terço do total da região’ é, então, altamente enganosa. Apenas para se ter uma idéia, se todos tivessem HIV na América Latina, não poderíamos falar que a situação brasileira era relativamente pior, certo? Só que se todos tivessem HIV, 42,5% dos casos de HIV positivos teriam que ser no Brasil, simplesmente pelo fato de aqui viverem mais de 2/5 dos latino-americanos.

Claro, sem dúvida que seria muito melhor se tivéssemos menos casos ainda, mas acho que faltou um pouco de atenção a esse ‘pequeno’ detalhe.

Números não mentem jamais, dizem. O problema é saber interpretá-los.

Um esclarecimento ao leitor

O leitor Célio Moreira comentou artigo meu na edição 303 [ver remissão abaixo]. Eis a carta:

HIV, Aids e bobos

Meus comentários não se referem a este artigo como um todo. O que quero comentar se relaciona apenas à frase na abertura do artigo, quando seu autor fala da abordagem de forma acrítica de teorias conspiracionistas como a ‘de que o HIV não causa Aids e outras bobagens do gênero’.

Pois bem, falarei um pouco de bobagens. Considerando que o HIV cause a Aids, recentemente um juiz condenou por tentativa de assassinato um soropositivo por manter relações sexuais com sua amante sem preservativos e sem avisá-la de que tem o HIV. Imagino que para a cabeça do articulista e biólogo Roberto Takata tudo esteja muito bem, essa decisão judicial pode estar correta. Imagino, também, que para os bobos que acreditam que o HIV não cause a Aids ela não esteja OK, ou possa, pelo menos, ser discutível. (Talvez aqui esteja a vantagem de se ser bobo ou de se acreditar em bobagens.)

Uma decisão judicial pode não ter nada a ver com a biologia, mas neste caso parece ter. A notícia inteira dá conta de que o réu dessa questão tinha uma amante. E foi essa amante quem moveu o referido processo. Ela se contaminou com o HIV. Deve-se entender que se o HIV causa a Aids o réu era aidético. Porém, a esposa desse réu mantinha relações sexuais regularmente com ele e (de forma inteiramente boba) não se contaminou, chegando mesmo a ter um filho que (creio, de forma mais boba que científica) também não se contaminou com o HIV.

Interessante tudo isso? Nada de espantoso nisso? Gostaria de simplesmente ver como um biólogo crítico aborda a questão. Mas, creio que nunca vou ter esse gosto satisfeito, já que, pelo que vi, o Sr. Takata entendeu que críticos foram aqueles que em Durban, no ano 2000, se retiraram da conferência, convocada para discutir as origens da Aids, recusando-se a discutir. E como é a esses críticos que ele apóia, não acredito que venha a ter explicação alguma além daquelas já tradicionais explicações: ‘HIV = Aids. Isso já foi provado. Fim. Essa é a nossa equação.’ Acabou o papo. Desculpe a perda de tempo. Obrigado pelo espaço para expressar uma dúvida intelectual. Abraços de um bobo.

Célio Knipel Moreira, Mogi das Cruzes-SP

Não se deve entender que se uma pessoa tem o HIV ela tenha necessariamente Aids – se o nível de HIV em seu corpo puder ser mantido baixo (por exemplo, com medicamentos), ela pode manter sua saúde sem desenvolver a Aids. Porém, as pessoas que desenvolvem a Aids a desenvolvem pela ação do HIV em seu organismo – notadamente destruindo as células de defesa chamadas de linfócitos T CD4+.

Conforme a história que nos conta, a pergunta é: por que a esposa não foi contaminada pelo HIV?

A relação sexual desprotegida aumenta em muito o risco de contaminação, mas não significa que em 100% dos casos a contaminação ocorra. De modo similar, dirigir embriagado aumenta as chances de provocar acidentes, mas pode ser que o motorista alcoolizado numa situação particular consiga seguir seu trajeto e chegar ileso a sua casa.

Para que se desenvolva a Aids é preciso primeiro que haja o HIV. Se não há o HIV e a pessoa não desenvolve a Aids, isso não traz nenhum problema para a hipótese virótica da Aids. Pela história que nos conta parece ser o caso.

Mas, além de HIV estar presente no organismo da pessoa, é preciso que ele tenha possibilidades de destruir as defesas naturais do indivíduo. Certamente a saúde geral debilitada pelo uso crônico de drogas e má nutrição apenas ajudam o HIV, mas mesmo pessoas saudáveis contaminadas pelo HIV ao longo do tempo tendem a perder a batalha para o vírus, caso não se submeta a nenhum tratamento de controle da quantidade de vírus em seu corpo (carga virótica): inicialmente as defesas naturais conseguem controlar o HIV como o fazem, por exemplo, com o vírus da gripe.

Relação causal

Por uma série de características, porém, o HIV consegue aos poucos ‘driblar’ as defesas imunológicas – uma delas é sua capacidade de mutação. O HIV ao se reproduzir em nosso organismo produz uma certa proporção de cópias ligeiramente diferentes – essas diferenças podem propiciar aos vírus variantes (ditos mutantes) a capacidade de escapar ao controle imunológico. Por exemplo, os anticorpos são bastante específicos, se a proteína do vírus anteriormente reconhecida por esses anticorpos é alterada na versão mutante, eles podem não mais se encaixar adequadamente. Em sendo novos anticorpos produzidos, novas variações podem escapar. Ao fim, à medida que o HIV se multiplica e destrói as células que parasita – os linfócitos T CD4+ acima mencionados –, o organismo do paciente fica debilitado o suficiente para ser atacado por doenças oportunistas – bactérias e outros patógenos, que normalmente não causam maiores problemas às pessoas, podem invadir e se multiplicar num corpo com sua defesa natural baixa.

Esse processo todo pode durar alguns anos. Nesse período a pessoa pode estar contaminada com o HIV e não desenvolver nenhum sintoma, mas pode ser capaz eventualmente de contaminar outras pessoas: por relações sexuais desprotegidas, por partilha de seringas, para filho na gravidez e qualquer outro meio que propicie o contato direto com sangue ou outro fluido corporal contaminado.

Bem, essa é uma história bem simplificada. Informações mais detalhadas podem ser obtidas, por exemplo, pelo sítio (www.aids.gov.br/)

Assim, a história que nos conta não é de fato nem um pouco espantosa em termos da relação entre o HIV e a Aids, embora possa ser um bela peça para análise jurídica – e sobre isso me abstenho por estar além de minha capacidade técnica (minha formação é em Ciências Biológicas, e não Direito).

E também desse modo espero que perceba que ninguém faz uma equação do tipo HIV = Aids, mas sim afirma que há uma relação causal – e não de identidade. Vejamos se uma comparação é esclarecedora: para que haja fogo é preciso que haja uma fonte de calor; imagine uma pessoa acusada de incendiária que se defenda assim: ‘Eu sou inocente. Sim, eu joguei o fósforo aceso no posto de gasolina. Mas também já joguei o fósforo aceso na calçada de meu prédio e nem por isso houve um incêndio. Também já joguei um fósforo aceso em outro posto de gasolina e não pegou fogo. Assim concluo que o fósforo não pode ser o causador do incêndio. Logo, eu sou inocente, já que não foi o meu ato que causou o incêndio.’

Rigor científico

Bem, não sei como um juiz avaliaria a situação acima. Mas se o HIV pudesse falar e dissesse coisa parecida – bem, o HIV não fala, mas tem seus ‘advogados’, que o defendem segundo essa mesma linha de raciocínio –, num julgamento honesto deveria ser condenado como parte na cadeia de eventos que leva à Aids.

(Existem outras questões a se considerar no exemplo do fósforo e o incêndio: há incêndios que ocorrem sem a participação de um fósforo aceso e nem por isso consideraríamos que naquele caso o fósforo não foi o detonador do incêndio no posto de gasolina. Em relação à Aids, não se conhece casos de Aids que não contem com a participação do HIV, embora haja outras imunodeficiências causadas por outros fatores – há a imunodeficiência genética, por exemplo.)

Neste OI tive a oportunidade de tratar da questão: ‘Leitor aguarda retratação’ (http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/
ofjor/ofc051120003.htm
)

Se – e é um grande se – houver dados que indiquem a inocência do HIV, aí, sim, poderemos (e deveremos) rever a etiologia da Aids. Por enquanto, os dados disponíveis apontam amplamente para a culpa do HIV. Não se trata de dogmas, mas sim de rigor científico e responsabilidade pública.

Atenciosamente, Roberto Takata

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Mestre em Biologia