Depois de dois anos difíceis, comprometidos pelo coronavírus, o Festival de Locarno, na Suíça, se prepara para sua 75ª edição. Serão projetados 226 filmes entre longas e curtas-metragens, entre os dias 3 e 13 de agosto.
O Brasil, apesar do atual desinteresse do governo pela cultura, estará representado no festival por três produções. Na Competição Internacional, a cineasta Júlia Murat vai concorrer com o filme “Regra 34”, uma coprodução com a França.
O filme traz a história de Simone, uma jovem advogada negra que divide sua rotina entre o acompanhamento de sessões de acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica e aulas de kung fu. Por meio de uma amiga, Simone entra em uma jornada de conhecimento de práticas BDSM.
Na categoria Cineastas do Presente, a cineasta brasileira Ana Vaz vem com o filme “É Noite na América”, uma coprodução com a Itália e França. Entre os curtas-metragens, o Brasil estará presente com “Big Bang”, de Carlos Segundo, também em coprodução com a França.
Haverá, ainda, outros filmes falados em português. O cineasta português Carlos Conceição participará com o filme “Nação Valente”, feito em coprodução com a França e Angola. Na competição Cineastas do Presente, haverá o filme “Nossa Senhora da Loja do Chinês”, do angolano Ery Claaer.
O Festival vai homenagear o cineasta grego engajado Costa Gavras, diretor de “Z” e “A Confissão”. Na atuação, o homenageado será o norte-americano Matt Dillon. O prêmio de Melhor Produtor Independente será dado a Jason Blum, pela inovação no cinema de horror.
A grande atração do Festival de Locarno é o cinema ao ar livre no espaço da Piazza Grande, com um telão de 400 metros quadrados para a projeção dos filmes.
Teocracia no cinema, filtros bolsonaristas e Ancine
Antes de escrever esse texto informativo sobre o Festival de Locarno, onde tenho ido há mais de 30 anos (só tendo me ausentado em consequência das limitações criadas pelo Covid), recebi um email de outro festival, o de Berlim (ou Berlinale), informando terem sido presos dois cineastas e um terceiro, alguns dias depois. São eles, Mohammad Rasoulof, Mostafa Al-Ahmad e Jafar Panahi, conhecidos e premiados em todo o mundo.
Fazer cinema no Irã não é fácil: não se trata de um país laico, mas de um país com religião oficial, o Islã. Ou seja, é um país teocrático islamita. Isso significa que todas as atrizes principais ou figurantes devem usar um lenço, que cubra toda a cabeça até o pescoço, o hijab. As roupas devem ser largas e longas, ir até os pés e as mãos, mas se pode andar de sandálias sem unhas pintadas. Turista com unhas das mãos pintadas tem de ficar sempre com as mãos nos bolsos nos lugares públicos. Nos filmes com cenas de homem e mulher não pode haver proximidade e nem contato físico entre eles.
No Brasil, país ainda laico, felizmente não é assim, porém, diante do crescimento dos evangélicos e do desejo de Bolsonaro em agradá-los, bem que o presidente gostaria de exigir, entre outras coisas, o padrão em vestir das assembléias de Deus e pentecostais, nas quais as igrejas mais exigentes proíbem às mulheres cortar o cabelo e usar calças como os homens, devendo também vestir roupas largas e saias bem compridas.
O pastor Silas Malafaia, uma espécie de mentor dos evangélicos, tem regras bem fixadas para o traje feminino (não sei se já foi contatado por alguma marca de confecção de “roupas gospel para mulheres cristãs”), mas fica claro não haver, para ele e essas igrejas, a tão falada igualdade entre homens e mulheres; isso não é bíblico. “As mulheres cristãs, diz Malafaia, devem se vestir com decência, sobriedade, com trajes decentes e honrados, evitando modismos indecentes que as desqualificam como servas de Deus. Devem evitar a falta de compostura e a sensualidade”.
Em síntese, o corpo da mulher já é pecado, nada de roupas mostrando as curvas e os volumes dos seios, das nádegas, das coxas, nem das barrigas das pernas. Tudo isso é pecado e pode dar más ideias e desviar os homens do bom caminho.
Embora o Brasil não tenha virado ainda uma república teocrática como o Irã, o presidente Bolsonaro bem que gostaria de ter apressado essa transformação, pelo menos na Ancine, por julgar que falta decoro nos filmes brasileiros. Assim, na sua obsessão de tudo desmontar e destruir, mirou na Ancine. Primeiro, tirando sua independência, saindo do Ministério da Cultura para a Casa Civil, e reduzindo de nove para três os representantes não governamentais da cultura, do cinema e das empresas privadas ligadas à sétima arte.
E a seguir (foi escândalo na época), criando “um filtro” nos projetos de produções brasileiras: nada de filmes de ativismo, de política ou de gênero, citando que com ele não haveria mais filmes como “Bruna Surfistinha”, porém filmes destinados ao bem da família. “Se não puder ter filtro, extinguimos a Ancine. Não pode é dinheiro público sendo usado para filme pornográfico”. É isso: Bolsonaro queria impor a censura na seleção dos projetos de filmes, abrindo a pior crise no cinema brasileiro. Só agora, em junho, a Ancine publicou edital para a apresentação de projetos de produções cinematográficas. É o caso de se perguntar: com filtro ou sem filtro?
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.