Ele é um jovem jornalista afegão, nascido na cidade de Ghazni, no sudoeste do Afeganistão, e que deixou o país por razões políticas. Atualmente refugiado, não se sente seguro para dizer onde ou como vive. Em nome da segurança de parte da sua família e amigos que ainda vivem no país, ele também nos pediu para não dizer como se chama, de que forma o contactamos, onde ou como foi realizada esta entrevista.
Formado em Direito na Universidade de Cabul, ele contribuiu com reportagens e artigos para a mídia afegã e internacional. Seus trabalhos mais recentes foram para a Agence France-Presse (AFP), após a queda de Cabul e antes de deixar o Afeganistão, em 2021, tendo como primeiro destino o Qatar.
Como jornalista, advogado e crítico da guerra e do Talibã, ele denunciou a situação de conflitos e violações de direitos humanos e liberdade de imprensa que há mais de 20 anos comprometem a democracia no Afeganistão. Alguns de seus textos foram escritos juntamente com outros jornalistas, cujos nomes ele também não pode mencionar por razões de segurança. Leia mais na entrevista a seguir.
Enio Moraes Júnior – Há algum tempo você foi forçado a sair de seu país. E isto está relacionado à sua profissão, ao seu compromisso jornalístico. O que realmente aconteceu e em que momento você decidiu: agora eu tenho que deixar o Afeganistão?
Jornalista afegão – Creio que tudo veio com a queda do governo anterior. Foi um momento em que soubemos que tudo desmoronou. Mas, pessoalmente, eu ainda estava empenhado em trabalhar no Afeganistão. Estava planejando ensinar os estudantes de forma voluntária, paralelamente ao trabalho como jornalista. Mas trabalhar para a AFP me fez entender muito depressa que as coisas ficariam terríveis para os jornalistas. Lembro-me de dias em que eu costumava discutir com meus colegas como poderíamos nos proteger sendo acríticos, não cobrindo certos eventos, como os protestos anti-Talibã e questões desse tipo. Em algum momento, senti que me foram dadas duas opções: ficar no Afeganistão e me autocensurar ou deixar o país. A morte nas mãos do Talibã seria a outra opção. Então, eu fui embora.
EMJ – Você cresceu em tempo de guerra em seu país, assim como os jornalistas Phil Grabsky e Shoaib Sharafi mostram em seu premiado documentário sobre a vida do jovem Mir Hussein (Aufgewachsen in Afghanistan: WDR / Arte, 2022). Como isso tem influenciado sua vida? Foi importante para sua decisão de se tornar jornalista?
JA – Bem, todos sabem que a guerra é desastrosa, mas poucos passam por ela para entender o que isso significa. Acho que nascer e ser criado na época da guerra faz agora parte da minha identidade. Memórias, feridas e traumas de guerra me acompanham sempre. Mas esse não foi um fator primordial na escolha do jornalismo. Eu era um grande fã das Ciências Sociais e de leitura, por isso decidi me tornar um jornalista: para seguir em frente com minha paixão.
EMJ – O que diz a imprensa nacional sobre o país? Quais são os problemas mais relevantes e quais temas surgem com mais frequência?
JA – Depois do retorno do Talibã, a mídia afegã está sob autocensura. Eu estava trabalhando com a AFP e era menos vulnerável por ter o privilégio de estar vinculado a uma organização como essa, mas os jornalistas que trabalhavam nos meios de comunicação nacionais eram vulneráveis. Conheço pessoas que estavam tão aterrorizadas que queriam desistir da profissão. Mas, enfim, o que aparece na imprensa nacional não reflete totalmente a realidade da sociedade afegã e muitas vezes a informação não pode cruzar os limites do Talibã. No entanto, os temas mais recorrentes são a pobreza, o desemprego, a imigração e, ocasionalmente – na mídia independente, que funciona fora do Afeganistão – as crueldades da milícia talibã e a crescente corrupção. Após o retorno do Talibã, muitos perderam seus empregos enquanto o país vivia um colapso econômico. A pobreza também está aumentando e muitas pessoas sentem que não se encaixam mais no Afeganistão. Portanto, elas partem para onde é possível. As mortes arbitrárias e a corrupção dentro do Talibã também são, às vezes, relatadas.
EMJ – O jornalismo internacional mostrou sérios problemas políticos, econômicos e de direitos humanos no Afeganistão. Como você avalia o espaço das minorias, especificamente os direitos das mulheres, no jornalismo afegão e na mídia social?
JA – A ideologia do Talibã é uma mistura de misoginia, valores anti-Shia e, em grande medida, baseada no centralismo Pashtun. Partindo da minha própria experiência de trabalho na AFP, entendo que os jornalistas da agência muitas vezes não têm acesso às pessoas que querem falar ou simplesmente não estão suficientemente familiarizados com o Afeganistão para compreender o que se passa no país. Portanto, o que eles mostram é apenas uma pequena parte da realidade. Como eu disse, a misoginia é uma pedra angular da ideologia do Talibã. Eles vêem as mulheres como seres humanos inferiores e não querem que elas tenham espaço na vida pública. Eu acho que a mídia internacional tem feito um grande trabalho cobrindo essa parte, e o mundo sabe mais ou menos de que forma o Talibã trata as mulheres. Eles também são anti-Shia, portanto, discriminam Hazaras e outros xiitas. Tenho amigos xiitas, cujos familiares foram presos pelo Talibã nos anos 90 apenas por serem xiitas. E a inimizade do Talibã contra esse grupo ainda continua. Recentemente foi noticiado que, em assuntos privados, eles não poderão mais recorrer às suas próprias leis religiosas nos tribunais. Um novo documento da ONU diz que eles até permitem ataques a Shia Hazaras para que estes possam dizer à comunidade internacional que o ISIS (Islamic State of Iraq and Syria) é uma grande ameaça no Afeganistão e somente o Talibã o enfrenta. Penso que um aspecto do governo Talibã que não está coberto é o seu centralismo Pashtun, que em sua maioria provém das partes Pashtun do país e que historicamente tem agido na tentativa de apagar a língua franca do Afeganistão. O Talibã investe pesado nesse sentido. Foi recentemente noticiado pela mídia local que eles apagaram o persa de nomes de universidades e outras instituições públicas. Outra reportagem de uma mídia local afirmou que as pessoas na cidade ocidental de Herat estão reclamando porque em sua cidade, predominantemente de língua persa, os funcionários do Talibã não podem falar persa e forçam os cidadãos a falar Pashtun quando vão aos escritórios. Os gabinetes também são fortemente dominados por Pashtun; foi relatado que 93% desses escritórios são Pashtuns, enquanto sua população total é estimada em torno de 42%.
EMJ – O país também tem severas restrições à liberdade de imprensa. Mas quando falamos sobre jornalismo regional e local, temos de abordar muitas particularidades das comunidades. Como isso funciona no jornalismo afegão?
JA – Acho que o caso do Talibã é bidimensional. Por um lado, é um governo baseado em um entendimento extremista do Islã. Isto significa que os jornalistas não podem questionar o que esse grupo diz sobre o Islã. Isto é perigoso porque o Talibã tem usado a religião para matá-los, como já fizeram antes. Portanto, não há espaço para perguntas difíceis sobre o Islã. Por outro lado, trata-se de uma ditadura. Isto significa que os jornalistas não podem questioná-los sobre assuntos políticos. Atualmente, a corrupção também está em ascensão e, ao contrário do que aconteceu antes, quando a mídia teve um papel pioneiro nas denúncias, agora, a imprensa deve permanecer em silêncio.
EMJ – Como ser um jornalista no Afeganistão? O que você pode dizer sobre o futuro de nossa profissão em seu país?
JA – Normalmente se vai à faculdade de jornalismo ou a outras faculdades de Ciências Sociais, se começa a escrever e depois se trabalha em meios de comunicação. Esse é geralmente o tipo de educação que se recebe. Houve também cursos de jornalismo de dois anos de duração. Embora muitas questões estejam incertas sob o regime do Talibã, uma coisa é clara: o jornalismo está se tornando cada vez mais um trabalho perigoso. O Talibã não pode governar o país adequadamente e o descontentamento está aumentando. Como eles não podem lidar com essas insatisfações, certamente apagarão quem as reportar.
EMJ – E quanto a você, e quanto ao seu futuro como jornalista: o que você planeja fazer?
JA – Atualmente estou tentando me estabelecer. Acho que vou começar a escrever para outros veículos de mídia ocidentais. Eu também penso que os jornalistas precisam entender profundamente o contexto do seu trabalho e o conhecimento especializado de outra disciplina termina por ser um ponto positivo. É por isso que estou tentando fazer meu mestrado em antropologia, para aprofundar minha compreensão sobre o Afeganistão e seu povo. A partir daí, vou começar a escrever com mais conhecimento, com mais paixão e com mais frequência.
Esta entrevista faz parte da série “Jornalismo no Mundo”, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor – Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.
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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: Enio OnLine.