A Wikipédia completou dez anos ontem [sábado, 15/1]. É o quinto website mais visitado na internet. Mensalmente, cerca de 400 milhões de pessoas utilizam seus dados. Aposto que muitos leitores desta coluna estão entre elas. Você quer checar alguma coisa, entra no Google e, então, com mais frequência ou não, escolhe o link Wikipédia como o melhor caminho para sua pesquisa.
O que é extraordinário nessa enciclopédia livre, que contém hoje mais de 17 milhões de artigos em mais de 270 línguas, é que ela é quase que inteiramente escrita, editada e autorregulamentada por voluntários não pagos. Todos os outros websites também muito visitados são empreendimentos multibilionários. O Facebook, com 100 milhões a mais de usuários, está avaliado em US$ 50 bilhões.
Visite o Google no Vale do Silício e vai se encontrar num vasto complexo de edifícios de escritórios modernos, como a capital de uma superpotência. Ali pode existir ainda algumas peças divertidas de Lego no saguão, mas você terá de assinar um acordo de confidencialidade para passar pela porta de entrada. A linguagem dos executivos do Google gira estranhamente entre a de um secretário-geral da ONU e a de um vendedor de carros. Num momento falam de direitos humanos universais para, em seguida, discutirem o ‘lançamento de um novo produto’.
A Wikipédia, ao contrário, é supervisionada por uma fundação não lucrativa. A Fundação Wikimedia ocupa um andar de um prédio comercial anônimo no centro de San Francisco . Você precisa bater forte na porta para alguém vir abrir. Dentro, a sensação que se tem é exatamente do que ela é: uma modesta organização não governamental internacional.
Fatos verificáveis
Se o principal arquiteto da Wikipédia, Jimmy Wales, tivesse escolhido comercializar a empresa, hoje estaria bilionário – como Mark Zuckerberg, do Facebook. Colocar a Wikipédia sob a égide de uma organização não lucrativa foi, disse-me Jimmy, ao mesmo tempo a mais estúpida e a mais inteligente ideia que teve. Mais do que qualquer outro importante site global, a Wikipédia exala o idealismo utópico dos heróis da internet nos seus primeiros dias. Os ‘wikipédios’, como eles se chamam, são homens e mulheres com uma missão. E essa missão está resumida na seguinte frase, que poderia ter sido de John Lennon, mas foi dita pelo homem que todos chamam de Jimmy: ‘Imagine um mundo em que todas as pessoas do planeta têm livre acesso à soma de todo conhecimento humano’.
Achar que este objetivo utópico poderia ser atingido por uma rede mundial de voluntários, trabalhando sem ganhar nada, editando todos os assuntos, com as palavras que digitam se tornando visíveis para o mundo todo, era, naturalmente, uma ideia completamente maluca. Mas este exército maluco avançou extraordinariamente em apenas dez anos.
A Wikipédia ainda tem grandes deficiências. Os artigos variam muito, em termos de qualidade, de um tema para outro e de língua para língua.
Muitos dos artigos sobre personalidades são irregulares e desproporcionais. E isso ocorre porque depende muito de que um ou dois wikipédios sejam genuinamente conhecedores daquele assunto e língua particulares. Eles podem ser surpreendentemente bons em pontos obscuros da cultura popular, e muito fracos em algumas áreas de interesse dominante. Nas versões mais antigas (em inglês e alemão, por exemplo) as comunidades editoriais voluntárias, apoiadas por uma pequena equipe da fundação, melhoraram muito os padrões de confiabilidade e capacidade de comprovação, especialmente insistindo nas notas de rodapé com links para as fontes.
Sei que você ainda deve sempre checar a informação encontrada ali antes de citá-la em algum contexto. Um artigo na New Yorker sobre a enciclopédia fez uma distinção interessante entre conhecimento útil e conhecimento confiável. Um dos maiores desafios da Wikipédia na próxima década é reduzir o máximo possível esse fosso que separa o útil e o confiável.
Outro grande desafio é levar este empreendimento para além do Ocidente pós-iluminista, onde nasceu e continua, na maior parte, alojado. Um especialista disse-me que 80% de tudo o que é editado pela Wikipédia provém do mundo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico da ONU. A meta da fundação é chegar a 680 milhões de usuários em 2015 e espera que grande parte desse crescimento seja em lugares como Índia, Brasil e Oriente Médio.
Mas o enigma não é porque o site ainda tem claras deficiências, mas porque ele tem funcionado tão bem. Os wikipédios dão várias explicações para isso. A Wikipédia chegou relativamente cedo, quando não existia esse número incontável de sites para os usuários da internet passarem o tempo. Uma enciclopédia trata (principalmente) de fatos verificáveis, em vez de trazer meras opiniões – comuns na blogosfera. E, sobretudo, ela teve sorte com suas comunidades de editores colaboradores. Diante da escala do projeto, a equipe de editores regulares é muito pequena.
Colaboração
Cerca de 100 mil pessoas colaboram em mais de 5 edições no mês, mas as grandes Wikipédias, mais antigas, como aquelas em inglês, alemão, francês ou polonês, são apoiadas por um grupo minúsculo de talvez 15 mil pessoas, cada uma oferecendo mais de 100 colaborações por mês. Na maior parte são jovens, solteiros e muito instruídos.
Como muitos dos sites globais conhecidos, a Wikipédia tem a vantagem de estar sediada no que o seu conselheiro Mike Godwin descreve como ‘o oásis da liberdade de expressão chamado EUA’. Todas as enciclopédias em línguas diferentes, não importa onde seus editores vivem e trabalham, são fisicamente hospedadas nos servidores da fundação nos EUA. E têm as proteções legais oferecidas pelas leis americanas de liberdade de expressão.
Civilidade é um dos cinco pilares da Wikipédia. Desde o início, Jimmy diz que deve ser possível combinar honestidade com boas maneiras. Indivíduos mal-educados são contatados e o problema é debatido com eles. Depois, eles são advertidos antes de, caso persistam, serem banidos. Se uma comunidade de uma língua for além da conta, a fundação tem poder para eliminar seus disparates do servidor. (A Wikipédia é uma marca protegida legalmente, enquanto que os Wiki alguma coisa não o são; é o caso do WikiLeaks, que não tem nada a ver com a Wikipédia nem é um wiki).
Não sabemos se o ataque a tiros em Tucson, Arizona, foi diretamente um produto da incivilidade corrosiva do discurso político americano, como ouvimos nas entrevistas de rádio e TV. Um louco pode ser simplesmente louco. Mas essa virulência política diária que observamos nos EUA é um fato inegável.
Diante desse pano de fundo deprimente, é bom comemorar uma invenção americana que, apesar de todas as suas falhas, tenta difundir pelo mundo uma combinação de idealismo não remunerado, conhecimento e uma obstinada civilidade.
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Colunista e escritor