Quando lançamos a Agência Bori em 2020, iniciativa voltada para a divulgação da ciência brasileira à imprensa de todo país, acabamos nos deparando com um desafio que inicialmente não estava previsto: a necessidade de uma definição do que, afinal, é um jornalista. O que define um veículo de comunicação hoje em dia? E o que caracteriza o trabalho jornalístico?
Explico. Na Bori, temos uma espécie de vitrine na qual depositamos de duas a três pesquisas científicas brasileiras por semana antes de sua publicação. São trabalhos que, por exemplo, mostram os impactos da Covid em quem tem diabetes ou que investigam os efeitos do aquecimento dos oceanos. Essas pesquisas são explicadas e postadas em área restrita da Bori para que os jornalistas cadastrados no sistema – hoje são mais de dois mil – reportem o material em seus veículos.
Só que, ao fazer isso, a gente precisa definir quem terá acesso a esse material destinado exclusivamente à imprensa. Quem consideramos como jornalista na Bori? Afinal, o que é jornalismo?
De acordo com texto deste Observatório da Imprensa publicado há uma década, o jornalismo pode ser entendido como “um “serviço profissional” que tem como principal atividade a transformação de algo em notícia. Temos aqui uma definição: quem faz notícia, faz jornalismo (o saudoso pesquisador José Marques de Mello ainda complementaria com “nota”, “reportagem” e “entrevista”, que, de acordo com sua “Classificação Marques de Melo”, também compõem o gênero informativo do jornalismo).
Só que não basta dizer que faz notícia – ou nota, reportagem e entrevista – para se autodeclarar jornalista. Esse debate já foi levantado por instituições como a Reporters Committee for Freedom of the Press que, assim como a Bori, mas por diferentes motivos, precisa ter uma definição prévia do que entende por jornalismo. A organização fornece serviços e recursos jurídicos gratuitos para jornalistas para garantir a liberdade de imprensa. Para a ONG, em texto de 2011, novas mídias (new media) não são necessariamente veículos de mídia (news media). Ou seja: sair produzindo conteúdo em novos formatos não transforma ninguém em jornalista.
A confusão entre jornalismo e produção de conteúdo, aliás, tem sido comum – e muito debatida. Tem muito produtor de conteúdo por aí com cara de publicidade ou de ativismo (que, vale reforçar, não é jornalismo). Jornalismo é diferente: “envolve investigar e trazer à tona o que está escondido”, escreve em suas redes sociais, em maio, O Joio e o Trigo, veículo que se define como jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder. E segue: “Envolve colocar o pé na lama e correr riscos para levar às pessoas a melhor informação possível. O Joio faz jornalismo”. Faz mesmo.
Definição legal
Antes, debater tudo isso seria bem mais “fácil”. Há algumas décadas, o conceito de jornalismo foi definido no país por um decreto, de março de 1979, que regulamentou e atualizou uma lei anterior, de outubro de 1969 (ambos formalizados em plena ditadura militar). De acordo com os textos, a profissão de jornalista compreende atividades como “redação, condensação, titulação, interpretação, correção ou coordenação de matéria a ser divulgada” ou “comentário ou crônica, por meio de quaisquer veículos de comunicação”. Ok.
A “empresa jornalística” era elemento central da atividade jornalística – aquela que, define o texto, tem como atividade a “edição de jornal ou revista, ou a distribuição de noticiário” ou a “radiodifusão, televisão ou divulgação cinematográfica, ou de agências de publicidade ou de notícias.” Jornalismo, então, era tudo aquilo feito em veículos de comunicação formais.
E mais: o exercício da profissão de jornalista, de acordo com a legislação, demandava registro prévio no Ministério do Trabalho, mediante a apresentação de nacionalidade brasileira, diploma de curso superior de jornalismo e carteira de trabalho. Então era assim: jornalista era um profissional diplomado na área, que trabalhava em uma empresa de comunicação.
Sem diploma
Essa legislação orientou a atividade da imprensa no país por décadas, até começar a ser questionada especialmente na virada do século. O entendimento foi de que a legislação que estabelecia as regras para exercício da profissão era incompatível com a Constituição Federal de 1988. Em 2009, o STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou a exigência do diploma para o exercício da profissão. Ainda assim, as empresas de jornalismo contratam, em sua maioria, jornalistas para fazer jornalismo (mesmo cenário, aliás, dos EUA, como observa um dos maiores especialistas em jornalismo do mundo, Phillip Meyer).
Só que o jornalismo, cada vez mais, começou a sair das “empresas jornalísticas” e ganhou outros espaços que a legislação lá das décadas de 60 e 70 jamais poderia ter previsto. Na Bori, por exemplo, temos cadastrados algumas centenas de jornalistas (por autodefinição) que atuam em veículos independentes, individuais e alternativos. São, por exemplo, blogueiros que conduzem um canal de informação em cidades onde veículos profissionais não chegam – seja no Norte ou Nordeste do país ou mesmo no interior de São Paulo. Os chamados “desertos de notícia”, ausentes de veículos profissionais de mídia.
Eles informam, por exemplo, calendário vacinal de Covid à população em um exemplo típico de jornalismo de serviços. Tratam também de questões locais – sociais, econômicas e políticas. Em alguns desses desertos, há, sim, veículos jornalísticos profissionais, que, porém, não raro atuam na esfera de interesse de líderes políticos locais. Assim, esses blogueiros têm ainda um papel heroico de se colocar como fonte única de informação e de oposição. Fazem jornalismo? A Bori entende que sim.
Há também, claro, o jornalismo que segue nos veículos formais. Isso a gente confere pela lista do Atlas da Notícia, na qual o próprio veículo se inscreve ou é indicado ao Atlas e, então, pesquisadores e coordenadores do projeto validam o material. Lá, vemos, por exemplo, que a região Norte do país tem mais de 1,1 mil veículos jornalísticos oficiais ativos, como “A Gazeta do Acre” ou o jornal “A Crítica”, de Manaus – só para se ter uma ideia.
É um bom caminho, mas deixaria de fora da Bori os blogueiros que mencionei anteriormente. Ou radialistas que comandam — sem diploma e, muitas vezes, sem recursos e sem institucionalização — pequenas emissoras fundamentais para informação local. E também excluiria parte dos veículos jovens, independentes e alternativos (O Joio e o Trigo, veículo mencionado neste texto, não constava no Atlas da Notícia até o fechamento deste texto).
Para confundir ainda mais essa história, algumas empresas formalmente jornalísticas nem sempre trabalham investigando e trazendo “à tona o que está escondido”. Derrapam no jornalismo; podem, inclusive, contribuir para a desinformação. Há, por exemplo, em alguns veículos profissionais, um excesso de colunas surgidas nos últimos anos, com opiniões estridentes, que ganham cliques e viralizam na internet. É jornalístico um veículo profissional que tem, entre seus colunistas, nomes que se colocam contra a vacina com base em dados anedóticos? Ou que negam o aquecimento global e dados do desmatamento da Amazônia? Isso eu não sei responder, mas tenho pensado muito a respeito.
Em um cenário em que a informação nem sempre está em veículo profissional de mídia e que, quando está fora dele, pode ser ativismo, – e em que o jornalismo profissional nem sempre informa a sociedade –, parece cada vez mais difícil definir quem, afinal, é jornalista. Mas vamos continuar tentando – pela Bori e pelo jornalismo.
Agradeço ao jornalista Marcelo Soares, também do Labjor/Unicamp, pelos debates que enriqueceram este texto.
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A RedeComCiência é uma associação apartidária e sem fins lucrativos, criada em fevereiro de 2018, para reunir profissionais interessados em discutir, ampliar, viabilizar e melhorar o jornalismo e a comunicação de ciência no Brasil. Ela é formada por profissionais das áreas da comunicação, divulgadores científicos e cientistas de todo o Brasil.
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Sabine Righetti é jornalista, doutora em política científica e tecnológica e pesquisadora no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/UNICAMP). Também é co-fundadora da Agência Bori. Ela pode ser contatada pelo e-mail sabine@unicamp.br. O texto foi escrito a convite da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência) e é resultado da disciplina ‘Jornalismo Científico’, coordenada por ela no Programa de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural MDCC, do Labjor-Unicamp.