Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Catástrofes e votos

As pessoas que moram em encostas, margens de rios e outros locais de risco (por exemplo, favelas onde há tiroteios entre bandidos, ou destes com a polícia, ou áreas dominadas pelas milícias) não o fazem por ignorância ou insensibilidade. Fazem-no porque, em seu cálculo de custo e benefício, essa é a melhor opção, ou a menos ruim, quando colocam na balança emprego, transporte, custo da moradia, educação e saúde.

Na hora de votar, não escolhem meramente entre nomes indistintos, mas em função de acordos tácitos ou explícitos com os candidatos ou seus representantes locais (cabos eleitorais). O que entra em linha de conta não são propriamente políticas públicas – como seria um programa permanente de realocação de moradores em áreas de risco –, mas arranjos com o poder executivo, com ou sem intermediação de integrantes do poder legislativo.

Isso ocorre há décadas e não é exclusividade brasileira. No início de Rocco e seus irmãos, filme feito por Luchino Visconti em 1960, a família Parondi, de migrantes meridionais, é aconselhada a invadir um apartamento de um conjunto habitacional em construção na periferia de Milão. ‘Ocupem, que depois a prefeitura deixa vocês ficarem’, recomenda um amigo de Vincenzo, o irmão operário da construção civil que fora viver na grande cidade antes da mãe e dos irmãos. E é o que acontece no filme.

Incorporação ao território oficial

É perfeitamente compreensível que os brasileiros moradores em áreas de risco relutem em sair de onde estão. Em primeiro lugar, deixar a própria casa de uma hora para outra, em meio a uma catástrofe, é um transtorno tremendo, causa trauma. Depois, muitos não têm para onde ir. Todos temem a ação de saqueadores. E, afinal de contas, eles não foram autorizados pelas autoridades, direta ou indiretamente, durante anos e anos, a ficar onde moram?

Desse ponto de vista, a urgência consiste em tornar preventiva, e não reativa, a ação das defesas civis, enquanto se buscam soluções não precárias. Soluções que dependem, entre outras coisas, de uma mudança no perfil da distribuição de renda.

Loteamentos ‘clandestinos’ (entre aspas, porque nunca o são), ocupações ou favelas viram bairros ao receber serviços públicos essenciais. São incorporados ao território urbano oficial pela inclusão dos seus logradouros no cadastro de imóveis do município e, portanto, na cobrança de IPTU, quando cabível, e no cadastro de endereçamento postal. Tenha ou não havido melhorias capazes de torná-los parte efetiva da cidade. No Rio de Janeiro, a prefeitura transformou favelas ou conjuntos de favelas em regiões administrativas: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão, Maré.

É equívoco falar em ‘ausência do Estado’

Do outro lado do balcão, os detentores de mandatos conhecem perfeitamente as áreas onde buscam votos. Quando se trata de eleitos pelo voto majoritário, ou seja, governadores, prefeitos e senadores (a presidência da República também, mas vamos deixá-la de lado aqui), esse conhecimento compreende todo o território do município ou estado. Tudo muito bem descrito e contabilizado pelos comitês de campanha. Os detentores de mandatos são muito competentes nessa negociação e, portanto, na conservação de seus ‘currais’ urbanos.

Em muitíssimos casos, para não dizer todos, são os eleitos que validam o morar em áreas de risco, interessados na negociação (tácita ou explícita) com os eleitores. Por isso não tem sentido falar em ‘omissão’, nem em ‘incompetência’, ‘desleixo’, ‘inação’, ‘incapacidade de fiscalizar’, ‘vista grossa’ do poder público. Ao contrário. O olhar dirigido a essas concentrações humanas (de eleitores) é minucioso, detalhado, muito mais rico do que o da mídia, por exemplo. Não tem cabimento pedir ‘ação enérgica das autoridades’. Elas nunca deixaram de agir em benefício próprio e, supostamente, de seus ‘clientes’.

Como no caso da criminalidade, é um equívoco falar em ‘ausência do Estado’ quando o que há é uma presença bandida de segmentos do aparelho estatal (policiais, fiscais etc.) e uma presença insatisfatória de serviços públicos essenciais ‒ saúde, educação, saneamento, transportes, segurança.

Essa percepção esteve até aqui ausente do noticiário sobre as catástrofes no Rio, em Minas Gerais e em São Paulo. Ela é necessária para ‘fechar o círculo’ e fornecer aos cidadãos um quadro preciso dos problemas urbanos.

Velhos esquemas sem novas soluções

Em fevereiro de 1988, 134 pessoas morreram em Petrópolis devido à intensidade de um temporal de verão. Muitas delas, em áreas de risco onde a então deputada federal Ana Maria Rattes (PMDB-RJ; 1987-1991) distribuiu centenas de títulos de posse para respaldar a construção de habitações irregulares. O marido dela, Paulo Rattes, era prefeito da cidade (1983-1988, pela terceira vez; hoje é deputado federal pelo PMDB-RJ). Na época, a imprensa do Rio de Janeiro não sonegou informações a respeito. Os principais meios de comunicação fizeram a crítica pertinente.

De lá para cá, entretanto, a prática só se agravou. Os poderes públicos estão ainda mais presentes em ações espúrias. Em Duque de Caxias, nos últimos dias de 2010, a polícia prendeu 25 integrantes de uma milícia composta, entre outros, por dois vereadores (um deles, Jonas É Nós, pertencente ao PPS). Eis um trecho da notícia dada pelo O Dia Online (22/12):

‘Segundo as investigações, a milícia era comandada pelos vereadores Jonas Gonçalves da Silva, o Jonas É Nós, e Sebastião Ferreira da Silva, o Chiquinho Grandão. Dois filhos de Jonas – o ex-PM Éder Fábio Gonçalves da Silva, o Fabinho É Nós, e o PM recém-formado Jonhantan Luiz Gonçalves da Silva, o Petão – também foram presos.

A quadrilha movimentava R$ 300 mil por mês com a exploração de TV a cabo clandestina (‘gatonet’), cobrança de pedágio sobre venda de gás, fornecimento de cestas básicas, agiotagem e grilagem de terras. O grupo é acusado de pelo menos 50 homicídios na região, segundo levantamento inicial da polícia.’

Onde se lê grilagem de terras, vislumbre-se uma espécie de esquema ‘perfeito’ do domínio territorial: essa milícia ocupou áreas devolutas ‒ inclusive uma APA, Área de Proteção Ambiental ‒ e as transformou em loteamentos, criando, portanto, suas próprias fontes de extorsão (e de votos).

Em sã consciência, não é possível sustentar a narrativa de que o Estado está ausente desse e de outros contextos. Está presente. Entender a natureza de tal presença é um primeiro passo para contrapor a velhos esquemas novas soluções que preservem vidas e respeitem a dignidade dos cidadãos. Sem a mídia na linha de frente isso não será feito.

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Jornalista