Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que não pode ser contabilizado

‘Já é a maior tragédia natural da história’, mancheteiam os jornais. O governador Sérgio Cabral disse… O governador Geraldo Alckmin afirmou… A presidenta Dilma lamentou… A cobertura dependente dos discursos oficiais e da contabilidade fúnebre não é novidade em mais esse janeiro, de chuvas e mortes. Parecem tão pegas de surpresa como prefeitos e governadores. Como poderiam imaginar que isso fosse ocorrer? Como, como? O fato é que a imprensa brasileira perdeu, mais uma vez, a oportunidade de trazer o assunto à tona antes do primeiro pingo d´água e prestar serviço público. Estava ocupada com as despedidas do presidente, com a possível roupa de Dilma, com o caso Cesare Battisti, com a novela Ronaldinho. Com tanto barulho, não foi possível ouvir. O morro já estava em deslizamento, mas em silêncio.

Como não é possível calcular quanto vale uma omissão, fica mais simples contar os milímetros de chuva e até os cadáveres no meio da rua misturados ao lamaçal. De microfones em punho, lá estamos nós esperando uma declaração. ‘Quantos morreram?’, ‘Já é a maior tragédia?’, ‘Quanto de dinheiro vai ser liberado agora?’ Pronto, já com a manchete do dia, nem é necessário mais saber como evitar que outros acidentes ocorram. A prestação de serviço não é apenas contar a história daquele pai que perdeu a filha. Mas como outros pais não perderão as suas. Ao que nos conste, obras contra cheias ocorrem fora do período de chuvas. Se ocorrem ou não, agora já é tarde para saber. Conscientização com moradores de encostas deveria ser feita todos os dias. Mas jornalista não vai para encosta quando o morro está seco.

Dengue e febre amarela

Mais uma vez, as dimensões da apuração jornalística encostam no factual e no drama. As causas ficam em um espaço sombrio, tecnicista e até fatalista. Coitado de São Pedro. Na hora da chuva, apurar os rastros desse crime ocorre de forma atropelada. Ou por se tratar da ligação com o desrespeito ao meio ambiente, ou porque os discursos apontam para a vítima, perdoem-nos, a vítima (mesmo!) como culpada.

Para a maioria dessas pessoas, o Estado se apresenta pela primeira vez nessas horas. Não teve, antes, escola, nem ônibus, nem médico, nem luz, nem polícia. A vítima, antes, era estorvo. Agora, é número. E todos nós, jornalistas, fomos ensinados a destacar os números. Só que deveriam ser os números de antes. Antes de dezembro ou janeiro chegar. Já pensou a pauta em outubro: quanto foi usado nas obras contra cheias na cidade, quantas pessoas moram nas encostas, quantas foram removidas, o desassoreamento do rio, a barragem, quanto ainda pode ser feito? Na hora da lama, tão somente nesses dias, é que se tenta explicar para uma comunidade o que faz uma cidade ficar debaixo d´água. Pior: vidas inundadas em cenários de desassistência e terror. Ao final da coletiva, alguém pergunta: ‘Essa é a maior tragédia, ou não?’

As redações ficam em bairros longe da lama. Os carros da reportagem entram no trânsito. Mas, os colegas chegam à redação. Ar condicionado, pé lavado, um café e a consciência limpinha. Como se fosse a primeira vez.

Mas atenção. Outras novidades quentíssimas podem vir por aí: a dengue e a febre amarela. Mas, por enquanto, não estão na pauta.

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Jornalista e professor universitário