No jornal Le Monde, de Paris, de 14 de julho de 2022, lemos a manchete “Haiti: ao menos 89 pessoas foram assassinadas e 16 pessoas estão desaparecidas”, na Cité Soleil, um bairro da capital Porto Príncipe. De quando em quando, o Haiti aparece na primeira página, quase sempre na rubrica “Catástrofes”.
Ao ler os jornais nos últimos dez anos, tanto impressos como televisivos, o que vimos anunciado a respeito do país foram vários terremotos e ciclones, o assassinato de um presidente, o sequestro de missionários europeus e norte-americanos e, recentemente, o surgimento de várias quadrilhas criminosas. No dia 18 de julho de 2022, o número de vítimas da guerra entre gangues rivais na favela de Cité Soleil havia aumentado de 89 para 300, segundo Pierre Espérance, diretor da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos. No entanto, esta informação não foi retomada.
Todos que quiserem saber um pouco mais poderão ter o prazer de ouvir e ler Dany Laferrière e Yanick Lahens. Estes dois grandes romancistas têm escrito livros de grande valor. Eles ganharam prêmios e reconhecimento internacional. As suas obras, com títulos reveladores, atestam, além da estética e da literatura, as suas dúvidas, os seus questionamentos, a sua perplexidade: Dany Laferrière publicou “L’énigme du retour” [1], Yanick Lahens “L’Exil, entre l’ancrage et la fuite” [2].
O solo haitiano tantas vezes e de tantos modos tem sido subtraído física e intelectualmente. Todas essas tragédias empurram os haitianos, um a um, sem grandes ruídos da grande massa, a se manifestar com os pés, a fugir para a República Dominicana, Estados Unidos, Canadá e França e, mais recentemente, para o Brasil, Chile, Colômbia e México. O acolhimento reservado a eles nada tem a ver com o oferecido aos refugiados ucranianos. Os milhares de haitianos que tentavam atravessar do México para os Estados Unidos em setembro de 2021 foram chicoteados por guardas de fronteira em Del Rio, Texas. Os ucranianos, por outro lado, se beneficiaram de um portão especial, aberto no aeroporto de Tijuana ou na cidade fronteiriça de San Ysidro.
Há anos o Haiti “expulsa” o seu próprio povo. Como disse recentemente o ministro dominicano das Relações Exteriores, em 19 de julho de 2022, os haitianos estão se cansando da solidariedade internacional. Mas de que tipo de solidariedade estamos falando? Por mais de um século, as intervenções da “comunidade internacional” têm se sucedido continuamente. Elas são multiformes, militares, financeiras, “humanitárias” e religiosas. Todos eles têm o mesmo denominador: conter, se necessário pela força das armas, os excessos migratórios e delinquentes e confiar o manejo sanitário e alimentar da população a organizações beneficentes estrangeiras.
Este remédio amargo, em dose cavalar, não trouxe até o momento paz, desenvolvimento e estabilidade institucional aos haitianos. Ele apenas autoriza a violência contra os delinquentes que atacam os estrangeiros. Um dos responsáveis pelo sequestro de clérigos norte-americanos em 16 de outubro de 2021, membro da gangue “400 Mawozos”, foi preso em 28 de abril e extraditado para os Estados Unidos em 16 de julho. A ajuda para o país está muitas vezes condicionada ao aumento de exportações agrícolas dos EUA, assim como à manutenção de dezenas de “cooperadores” de todo o mundo, o que consome a maior parte dos recursos provenientes da solidariedade internacional. Um relatório do Groupe d’étude, de Recherche et de Formations Internationales (Grupo de estudo, pesquisa e formação internacional), afirma que “84% dos fundos” coletados “vão para ONGs”. Pior, apesar da tentativa de esconder uma realidade sombria, em 2010 [3] As Forças de Paz estiveram na origem de uma epidemia de cólera que, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), causou a morte de cerca de 10.000 haitianos.
Por trás dessa negligência planejada, prospera uma pequena “elite” social, que resolve as suas contradições recorrendo a capangas. Seus crimes gozam de impunidade quase absoluta, em troca de serviços políticos. Em 13 de novembro de 2018, 71 pessoas foram assassinadas na favela de Salines. Este distrito rebelde, contrário ao presidente que mal tinha acabado de ser eleito, Jovenel Moïse, foi vítima de uma expedição política punitiva liderada por “gangues”. Toda essa lógica está fugindo ao controle de seus patrocinadores. O chefe de Estado, Jovenel Moïse, foi assassinado em 7 de julho de 2021. Em 2 de janeiro de 2022, o primeiro-ministro, Ariel Henry, cujo nome foi citado no assassinato do presidente, escapou de uma tentativa de assassinato em frente à catedral de Gonaives. Desde então, os bandidos, as “gangues”, como são chamados aqui, seguem firmes em sua impunidade e mobilizam suas energias tornando reféns de suas ações os pobres e os menos pobres, os estrangeiros e agora os ricos. Ocorreram 221 sequestros de julho a setembro de 2021. São 60 a 70 sequestros por mês desde janeiro de 2022.
Há, no entanto, um pequeno vislumbre de esperança. O governo, os partidos políticos, as várias plataformas partidárias e as associações haitianas decidiram se encarregar de seus próprios assuntos, sem a ONU, sem a “comunidade internacional”, sem os Estados Unidos, Canadá e França. Esta iniciativa reconhece o fracasso voluntário de atores externos que estão mais interessados em conter um problema de imigração do que em resolver uma situação que está se tornando cada vez menos suportável para os habitantes do país. A única sombra no quadro é a de que aqueles que tentaram e conseguiram o assassinato do Presidente Moïse podem, entre perdas e ganhos, podem até se beneficiar.
Foi, portanto, organizada uma reunião, com dificuldade, entre as chamadas forças “Musseau” ou “11 de setembro” e as forças de “Montana”, qualificadores referentes ao local de fundação dessas coalizões. Uma data e uma agenda que satisfizesse todas as partes envolvidas ainda não foram encontradas.
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[1] O enigma do retorno.
[2] O Exílio: ficar ou fugir.
[3] Louis-Charles Gagnon-Tessier, “Gestão de crises: análise do caso do terremoto de 2010 no Haiti”, GERFI, Quebec, 2010, p 11.
Texto publicado originalmente em francês, em 28 de julho de 2022, no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “Y-a-il un capitaine à bord du navire Haïti?”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/106667. Tradução: Jeniffer Aparecida Pereira da Silva e Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky É diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean-Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos com sede na UFSCar-Universidade Federal de São Carlos.