Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mundo aprisionado em suas ideologias

(Foto: Olga1205/ Pixabay)

Desde esta quarta-feira, 3, e até 13 de agosto, tem lugar a 75a edição do festival internacional de cinema de Locarno, na Suíça, cujo programa inclui filmes de realizadores brasileiros e portugueses. Na sexta-feira, estreou no âmbito do festival “Nação Valente”, filme do realizador luso-angolano Carlos Conceição.

Este que é o segundo longa-metragem do cineasta trata do fim da presença portuguesa em Angola e ao abordar os confrontos com os nacionalistas angolanos, dá também espaço para um drama, com uma jovem angolana descobrindo o amor e a morte com um soldado português.

O cineasta português Carlos Conceição, um dos integrantes do grupo responsável por um nascente movimento de Novo Cinema em Portugal, trouxe para Locarno seu segundo longa-metragem, “Nação Valente”, um filme atemporal cuja referência inicial é o ano de 1974, que precede a independência de Angola. Seu primeiro longa-metragem foi “Serpentarius”, exibido no Fórum da Berlinale.

A temática de “Nação Valente”, sobre um mundo num beco sem saída, inclusive politicamente, com uma esquerda encontrando dificuldade para oferecer uma alternativa nova, parece se encontrar também em outros filmes. Seria talvez decorrente da repetição de guerras e ameaças de guerra em diversas partes do mundo. Situação agravada com a invasão da Ucrânia pela Rússia confundindo o quadro político internacional, já que existem interpretações tanto de direita e de esquerda condenando ou apoiando Putin.

Reflexão sobre a história, o colonialismo e a guerra, com este filme, Carlos Conceição pretende igualmente dizer que as ideias subjacentes ao colonialismo continuam bem presentes nos dias de hoje, designadamente através das discriminações em função do género, da cor da pele, da instrução, ou da sexualidade. O cineasta lança deste modo um olhar sobre a natureza cíclica do fascismo e como continua a ser uma ameaça.

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Não se deve aceitar nenhuma forma de colonialismo

Carlos Conceição nos concedeu uma entrevista a respeito do seu filme e sobre essa problemática política atual.

O seu filme é uma parábola. Fale-nos dele.

Carlos Conceição: Antes de mais, creio que sim, o filme é uma parábola e penso que é uma parábola sobre o presente que usa o passado como instrumento para convidar o espectador a refletir sobre se as ideias de que gostamos de pensar que são ultrapassadas, estarão realmente ultrapassadas. Temos no mundo inteiro uma espécie de ressurgimento cíclico de ideias velhas que provavelmente não são constantes, não são as mesmas, mas que são sempre contraproducentes, sempre contra-revolucionárias, são sempre contra-evolutivas. No entanto, elas aparecem outra vez e a minha principal ambição com este filme é a de convidar o espectador a pensar nessas questões à luz do presente, quando todos pensam que essas ideias já não fazem parte do nosso dia-a-dia. Até que ponto é que elas ainda são aceitáveis no contexto do presente?

Uma constante são as guerras.

Carlos Conceição: As guerras parecem ser sempre uma consequência e acabam depois por ser a causa de novos pensamentos, mas as consequências das ideias antigas e dessa constante batalha de ideologias que parece que comanda toda a existência das pessoas infelizmente.

Aqui já chegou a fama de que Carlos Conceição está criando o Novo Cinema português. É um grupo de que faz parte?

Carlos Conceição: Esta é a primeira vez que estou a ouvir esta narrativa. Sobre o fato de haver um grupo, não sei. Sinto que na verdade o cinema português está bastante fraturado e bastante individualizado. Na verdade, há tudo menos um sentimento geracional, um sentimento de grupo. Não existe um sistema de companheirismo nem de parcerias como por exemplo o que caracterizou a ‘Nouvelle Vague’, ou o ‘Cinema Novo’ brasileiro ou mesmo algumas fases do cinema português; eu penso que neste momento -e sobretudo depois da pandemia- parece existir muito uma espécie de um cinema introspectivo, diria quase egoísta e que não é igual de filme para filme. Não partilha tanto parentesco. Mas é bom ouvir dizer que fora de Portugal existe essa impressão.

Seu filme começa no ano de 1974 e de repente, nós estamos no ano de 2022. Como fez essa transposição?

Carlos Conceição: Eu penso que há uma transição no filme, uma provocação histórico-temporal que serve justamente para convidar o espectador contemporâneo a questionar se as ideias velhas do passado estarão realmente erradicadas no presente. Esse é todo o motor do filme. Quando nos habituamos a ver uma narrativa à luz de uma determinada época. Nós sabemos que estamos a ver uma história que se passa em Angola em 1974. Portanto, há muitos pensamentos que não questionamos porque sabemos que pertencem ao passado. Mas será que queremos assumir que ainda pertencemos ao presente? É isso que quero que o meu filme faça. Porque é verdade que essas ideias não estão ultrapassadas. Matam pessoas. Essas ideias antigas e discriminatórias da ditadura, do passado, do fascismo ainda matam pessoas hoje. Muitas vezes se diz que é preciso seguir em frente, virar a página, não falar do que está para trás, não perpetuar estas narrativas. Eu acho o oposto. Precisamos perceber por que essas ideias ainda existem hoje e qual é o tempo de antena que elas têm, para prevalecer.

O seu filme levanta questões sobre a direita-esquerda e o fim do colonialismo. Sente que poderia ser alvo de críticas por isto?

Carlos Conceição: Eu senti isso todos os dias da minha vida desde que nasci. Sinto isso muito vivo no discurso da direita. Sinto que não houve uma descolonização completa da cabeça das pessoas e creio que a descolonização era obrigatória no momento em que aconteceu, como continua a ser. O que me impressiona é que a descolonização não tenha sido completa, não tenha sido absoluta, que haja pessoas que ainda preservam essas ideias e que defendam o tempo antigo, que defendam extremismos de nacionalismos, ideias de extrema-direita, que na maioria das vezes envolvem discriminação baseada em género, em cor da pele, em instrução, na orientação sexual, uma porção de coisas de que as gerações mais novas já estão fora. Já têm uma abordagem muito diferente e uma frescura muito maior de visão dessas ideias. Mas ao mesmo tempo, começam ultimamente a surgir tabus em relação a certos assuntos que são uma espécie de contra-reação. Essas micro colonizações que existem culturalmente, hoje em dia já não se trata de ocupar ilegalmente o território de outras pessoas, apenas trata-se também de ocupar as mentes das pessoas com tabus, com ideias morais novas, novas abordagens talvez sobre produtos industriais, o materialismo, tudo isto é uma espécie de colonialismo. Eu penso que temos de estar sempre alertas.

No seu filme, aparece uma mulher, uma prostituta, Apolónia; fala dessa personagem.

Carlos Conceição: O que eu queria fazer era uma personagem quase de tragédia grega, uma personagem épica. Na tragédia grega, essas protagonistas como Electra, são figuras que trazem transcendência, que trazem transformação, que muitas vezes são eticamente ambíguas e são elas que são responsáveis pela iluminação de uma ideia, pelo esclarecimento de um problema. O que eu queria com esta personagem é que fosse uma mulher capaz de um pragmatismo muito palpável, muito concreto e que fosse tudo menos uma santa, que fosse uma mulher de carne e osso, uma mulher falível, uma mulher com as suas amarguras, as suas perdas e que fosse ela que trouxesse finalmente a verdade e a luz. Apolónia pareceu-me um nome apropriado porque, não tenho a certeza de conhecer toda a etimologia da palavra nem do nome, mas sei que Apolónia foi uma mártir cristã que foi torturada e que ficou sem dentes e, por isso mesmo, ela é a santa padroeira dos dentistas. Sendo uma mulher melancólica, no filme ela é também aquela que é capaz de ser embaixadora do sorriso e de trazer essa luz.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.