Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fome de informação: a cobertura insuficiente da insegurança alimentar no Brasil

Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão
Não era um gato
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

– Manuel Bandeira

(Foto: KamranAydinov/ Freepik)

 No dia 8 de junho de 2022, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) divulgou os dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Com resultados alarmantes, a pesquisa constatou que, atualmente, 33,1 milhões de cidadãos brasileiros se encontram em situação de fome.

A fome é o maior grau de insegurança alimentar – que também pode ser medida pelo nível leve ou moderado. Atualmente, 58,7% da população compõe a estatística, o que caracteriza mais de 125 milhões de pessoas sem acesso pleno a todas as refeições. Em comparação com a pesquisa de 2020, são 14 milhões de novos famintos e mais da metade dos lares brasileiros em vulnerabilidade, o que faz com que o País tenha um retrocesso de cerca de 30 anos.

Para o Brasil, conhecido por ser um dos maiores produtores de comida do mundo e que foi capaz de deixar o mapa da fome no ano de 2014, existe um certo estranhamento quando o assunto precisa ser tratado – tanto por parte da mídia como por parte da população. No entanto, a reação estigmática à escassez alimentar não acompanha o andamento da situação que já ameaçava novamente a nação em 2016 e foi também realidade em 2018. Agora, quatro anos depois de voltar a apresentar dados severos de carência alimentar, as coberturas acerca do problema deveriam ser mais frequentes e completas.

Para a produção desse texto, acompanhamos as atividades dos jornais digitais G1, O Estadão, Nexo e Poder 360 durante o período de 8 de março a 8 de julho de 2022, esta última, a data da publicação da pesquisa.

Estadão

Ao observar o Estadão, é possível encontrar matérias aprofundadas, com o foco principal na insegurança alimentar enfrentada no Brasil. O assunto foi abordado de maneira mais crítica e, em geral, menos noticiosa, como em notas e artigos de opinião. Entretanto, fica claro que o assunto passou a receber muito mais atenção após a divulgação da pesquisa da Rede PENSAN. Nos três meses anteriores, foram publicados apenas seis conteúdos que tratavam a fome como tema central, sendo dois deles arquivos de áudio, pertencentes à Eldorado FM, estação de rádio que integra o Grupo Estado. Somente em 8 de junho, o veículo chegou a postar três matérias e uma delas foi transformada em podcast.

A primeira das quatro matérias postadas neste período anterior à pesquisa, “A indignidade da fome”, que foi ao ar no dia 1° de abril, aborda nos seus três primeiros parágrafos uma contextualização irônica das problemáticas do governo de Jair Bolsonaro. A partir do quarto, passa a trazer informações mais específicas sobre a insegurança alimentar, e se refere ao Auxílio Brasil como um “programa social tão mal-ajambrado”, visto que o valor do benefício não acompanha a inflação no preço dos alimentos. Sendo assim, torna-se insuficiente para a garantia de uma alimentação digna. Por ser um texto de opinião, se desenvolve de maneira mais crítica e parcial. O autor deixa claro o seu descontentamento com a política vigente e o tempo inteiro faz o uso de dados mais concretos para credibilizar seus argumentos.

O segundo texto foi publicado no dia 13 de abril. Este se trata de uma notícia que divulga o resultado de uma pesquisa sobre a fome. Nela, é constatado que seis em cada dez casas brasileiras enfrentam a insegurança alimentar, faltando comida em 15% dos lares. Por ser um texto de caráter mais informativo, se baseia na coleta de dados e falas de especialistas. Já o terceiro texto, postado somente em 30 de maio, é uma pequena nota do blog “Claudio Considera” no qual, em menos de três parágrafos, o autor traz duas soluções que, em sua opinião, serviriam de plano B para combater o problema da fome no País. Estas seriam a distribuição de cestas básicas em parceria com instituições como a Central Única das Favelas (Cufa) e convênio com restaurantes para oferecer refeições de baixo preço. Entretanto, o autor não se aprofunda no tema e não traz dados concretos e muito menos justificativas para adotar as medidas sugeridas. 

Por fim, no dia 2 de junho, o Estadão trouxe mais um texto de opinião extenso, que se baseia em dados para evidenciar o problema da insegurança alimentar e da escassez de alimentos no Brasil. Sendo assim, é possível perceber que, em sua maioria, este veículo abordou o tema analisado de maneira mais crítica e menos noticiosa, com textos mais longos e opinativos. Porém, foram poucos os conteúdos publicados até a divulgação da pesquisa, quando o assunto passou a receber maior atenção da mídia. 

G1

Sendo um veículo majoritariamente dedicado à cobertura noticiosa em tempo integral, as matérias do G1 se apresentam de forma bem mais factual e curta, não se aprofundando muito no problema. Esse arranjo fica perceptível em três notícias que anunciaram campanhas de arrecadação de alimentos. Na primeira, postada no dia 14 de maio, até vemos a inserção de alguns dados de pesquisa no lead, dando um embasamento e, talvez, um senso de urgência para a ação em questão. Na segunda, publicada no dia 22 do mesmo mês, os três últimos parágrafos se dedicaram, somente, a tratar informações sobre a organização responsável pela campanha. 

Na matéria “‘São João Sem Fome’: voluntários arrecadam alimentos para famílias carentes de Natal”, divulgada no dia 6 de junho, aparecem, logo no início, dois dos fatores que explicam a fome ter aumentado tanto no Brasil: “A ação ‘São João Sem Fome’ busca minimizar os impactos causados pela alta nos preços dos alimentos e pelo desemprego”. Contudo, o restante da matéria não se propôs a apresentar um aprofundamento, muito menos, uma contextualização do problema como um todo. Isso certamente levaria o leitor a entender o porquê de milhares de pessoas estarem passando fome no Brasil, e que os responsáveis por resolver esse problema não são as ONGs, instituições, associações, movimentos sociais e afins, que realizam esse trabalho de forma voluntária. 

Ainda que o texto diga que as ações realizadas pelas instituições são para “minimizar os impactos causados”, a impressão que se tem é que somos condicionados a esperar ajuda somente desses agentes sociais; de que a solução para o problema está em doações, e não em políticas públicas criadas pelo governo.

Contudo, a narrativa não foi a mesma abordada em outras matérias que tiveram uma carga mais apelativa e emocional, distanciando- se do objetivo da reportagem: chamar a atenção para o real problema. 

Já na matéria sobre o protesto no Centro de SP contra o governo Bolsonaro, a fome e o aumento de preços, o tema pareceu ter ganhado um pouco mais de relevância, com fotos que favoreceram o ato e falas que validaram a causa. Por exemplo, a carta de convocação do ato que dizia: “Em 40 meses de governo Bolsonaro, as condições de vida da população brasileira pioraram significativamente e, por essa razão, é necessário ampliar a luta por mudanças profundas e emergenciais…”

Esse tipo de abordagem pode ser percebido em apenas outras duas matérias das seis publicadas no dia 8, data em que foi divulgada a pesquisa. Com um tom mais crítico, o título de uma delas traz essa conotação: Miriam Leitão sobre o aumento da fome no Brasil: ‘É preciso que o governo tenha políticas efetivas.  Na outra, publicada na editoria de Economia, a angulação se deteve em destrinchar o resultado da pesquisa, se tornando a matéria mais longa. Nessa, o veículo fez questão de trazer a preocupação para o problema da fome no Brasil, assim como dar destaque aos motivos que ocasionaram esta situação recorrente e tão cruel: “A continuidade do desmonte de políticas públicas, a piora no cenário econômico, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia da Covid-19 tornaram o quadro desta segunda pesquisa ainda mais perverso”. Já as demais falaram do tema tratando de assuntos regionais. 

Nexo

O jornal Nexo dedicou, no dia 8 de junho, um episódio inteiro do podcast “Durma com essa” para aprofundar o assunto da pesquisa da Rede Penssan, que já havia sido noticiada no texto “Fome no Brasil atinge 33 milhões e volta ao patamar dos anos 90”, onde oferece um panorama geral sobre os resultados relacionados à fome neste ano. A associação dos dois conteúdos é capaz de apresentar uma cobertura satisfatória, que, a partir das duas publicações, se mostra capaz de atender tanto o público leitor como o público ouvinte. No entanto, a observação se estende por um período maior da cobertura e verifica-se um vazio de informações sobre a fome nos três meses que antecedem a divulgação da pesquisa.

Foram veiculadas um total de 1.381 publicações do Nexo no período de 8 de março a 8 de junho de 2022. Destas, apenas 10 matérias abordam explicitamente a insegurança alimentar, e nenhuma foi publicada no mês de abril. O resultado – insatisfatório por se tratar de um tema tão atual e de grande interesse público – corresponde a uma porcentagem de 0,72% das publicações do site e faz parecer que, para o jornal Nexo, a fome se torna importante apenas com o resultado de pesquisas.

No entanto, a insuficiência quantitativa de matérias sobre a fome não é o único problema destacado. O que se observa nas publicações sobre a insegurança alimentar é uma cobertura repetitiva, com matérias que focam no impacto da inflação na alta dos preços, trazendo uma abordagem numérica sobre o assunto. Outro ponto negativo é a ambiguidade presente nos textos “Por que o endividamento das famílias brasileiras só aumenta”, de 3 de maio de 2022,  e “Inflação e desemprego batem recorde e passam de 10% no Brasil”, de 16 de maio de 2022, que passam superficialmente pelo assunto, sem fornecer grandes explicações ou, pelo menos, hiperlinks de outros textos capazes de aprofundar as informações.

O notável esforço imputado no resultado positivo das publicações sobre a pesquisa se repete, apenas, em duas matérias: “Insegurança alimentar disparou entre mulheres na pandemia”, de 25 de maio, e “Transferência de renda instável agravou insegurança alimentar” de 6 de junho. Os dois textos apresentam um enfoque mais humanizado, com aprofundamento da causa do problema e do público que ele afeta. É lamentável que a mesma abordagem não tenha sido levada em consideração em outros textos.

Poder 360

Ao acessar a interface do Poder 360 e pesquisar pela palavra ‘fome’, é possível deparar-se com inúmeras matérias relacionadas ao tema. Isso faz parecer que o assunto foi abordado de maneira relativamente recorrente, se comparado aos outros veículos analisados aqui. Contudo, esta é apenas uma falsa impressão. Falsa porque a realidade é que poucas vezes o assunto é, de fato, pauta principal. Na maioria das matérias publicadas no intervalo de tempo entre 8 de março e 8 de junho, a fome foi usada como apoio para reafirmar algum argumento, ou foi apenas citada superficialmente. Neste período, o tema foi constantemente relacionado ao desemprego e à inflação. Um exemplo disso é uma notícia publicada no dia 7 de maio, intitulada “Número de famílias na extrema pobreza salta 11,8% em 2022”. A matéria poderia usar o assunto como gancho para atentar os leitores sobre o aumento da fome no País, mostrar a realidade dos que passam por essa situação, mas não o fez. Ao invés disso, reduziu-se a falar do Auxílio Brasil e do desemprego. 

Aqui, resta o questionamento: como é possível falar da extrema pobreza sem sequer mencionar a relação disso com o crescimento dos índices de insegurança alimentar?

Outra pergunta que fica é: onde foi parar o “quem tem fome tem pressa”? No dia 8 de junho, data em que foi divulgada a pesquisa realizada pela Rede PENSAM, foram publicadas cerca de 5 matérias que falam especificamente sobre a fome e sobre a pesquisa. Esse poderia ser um bom número, se não fosse pelo fato de que o tema apenas ganhou destaque no dia em que o estudo saiu. É quase como se a fome só merecesse destaque quando pesquisadores apresentam dados estatísticos. Durante o resto do ano, ela serve apenas como gancho para falar da inflação. 

Porém, nem tudo são espinhos. A coluna de Kakay, apesar de não ter textos que falem especificamente da fome, relembra sempre da crítica situação alimentar que o Brasil atravessa. Ao que parece, o advogado faz questão de manter seus leitores em constante estado de alerta sobre o aumento incessante da insegurança alimentar no País. E ele não esperou para deixar plantada a informação. No dia 31 de março, Kakay publicou em sua coluna um texto que recebeu o título “O resgate da política”, onde discorre sobre o “discurso anti-sistema” do governo Bolsonaro. Ainda que o assunto não seja especificamente a fome, um trecho destaca-se e exemplifica o aviso: “É como se os 14 milhões de brasileiros que passam fome, os 11% de desempregados e os 116 milhões em situação de insegurança alimentar fossem somente números. Como se a fome não fosse real, a humilhação do desemprego fosse só retórica.”

A conclusão que se faz ao fim dessa análise é que, tanto na mídia hegemônica quanto na alternativa, a fome é tratada mais como estatística do que como uma questão social, que precisa ser esmiuçada em suas causas e consequências. Jornalisticamente, os veículos aqui analisados tratam a fome, como uma “base” na qual se apoiam para explicar a inflação ou o desemprego. Sem ressaltar que, de fato, ela é a consequência mais grave de todos esses problemas.

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Débora Santos, Gabriele Freitas, Mariana Rodrigues e Vivian Bonaço, sob a orientação da professora Ivana Barreto.