‘Muito bem, doutor… devemos sempre fazer as nossas desobrigas, como vigários. Esta é a nossa religião… Na miséria anda a Justiça, não é, sr. dr. juiz de Direito?’ (Canaã, Graça Aranha)
O romance Canaã foi lançado em 1902, marcando nossa literatura com críticas de fundo social, tendo como cenário a emigração alemã no Espírito Santo. Neste trecho, usado como epígrafe de nosso artigo, Graça Aranha já denunciava as mazelas judiciais que ao longo da História foram formando a percepção da sociedade a respeito dos poderes federais constituídos, em particular o Judiciário, como uma espécie de principado, mais preocupado com suas vantagens particulares, conforme já falava este escritor:
‘Tenho pena…’ ‘De quê, senhor doutor?, interrogou vivamente o escrivão. O senhor deve ter pena é de si, da sua família…’
Tráfico e corrupção
Voltando aos nossos dias, duas notas publicadas na imprensa, e reproduzidas abaixo, trazem grande preocupação à escrita, sua liberdade de crítica e denúncia. Se as decisões e ações judiciais ora em curso prevalecerem, romances como Canaã seriam censurados e memorialistas, ou até mesmo ficcionistas, daqui para frente terão suas palavras sob rígidas formas a pretexto da defesa de instituições. Simplesmente as negras becas da Justiça serão transformadas em mantos ditando o que pode ser escrito.
‘O Tribunal de Justiça do Rio condenou a Editora Record e o jornalista Guilherme Fiuza, autor do livro Meu nome não é Johnny, a pagar indenização de R$ 10 mil a Walter Luiz de Carvalho, que teve atuação como traficante contada no livro e no filme homônimo. Carvalho diz que, embora seu nome tenha sido trocado (ele era fornecedor do personagem central), a descrição permite identificá-lo. Em 2008, ele entrou com uma ação contra o autor, mas perdeu em primeira instância. Fiúza diz que o livro relata fatos que constavam no processo judicial’ (Folha de S.Paulo, 19/1/2011).
‘A Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro (Amaerj) vai entrar com uma ação penal na Justiça para que Lobão diga o nome de membros do Judiciário envolvidos em corrupção durante sua condenação por porte de maconha. Tais fatos estão relacionados com a autobiografia Lobão, 50 anos a mil, lançado em dezembro passado pela Editora Nova Fronteira’ (O Globo, 19/1/2011).
Liberdade de expressão
Devemos considerar que um processo judicial é público, podendo inspirar obras ficcionais, desde que a identidade de pessoas seja preservada. Em caso contrário, centenas de prefeitos, mesmo ministros ou até governadores, poderiam pedir a suspensão de uma novela televisiva de sucesso, alegando que se identificam com o personagem ‘Odorico Paraguaçu’.
Quanto a uma ação penal contra um cidadão para que denuncie possível corrupção de um dos membros do judiciário, teria que prevalecer, em toda sua plenitude, o Artigo 37 de nossa Constituição Federal, que prega os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade na administração pública. Tais princípios são incompatíveis com o foro privilegiado e o segredo de justiça para casos de corrupção, que na prática asseguram a impunidade. Longe, muito longe de assegurarem a garantia da independência dos membros do Judiciário para a plenitude na aplicação das leis.
Portanto, os casos acima não são puramente individuais, e sim, relacionados com a liberdade de expressão e a luta contra a corrupção em nosso país.
******
Físico e escritor, Rio de Janeiro, RJ