Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Em busca do consenso onde não há consenso

Nestes tempos estranhos em que a credibilidade da mídia está em níveis nunca dantes alcançados – níveis abaixo do abaixo –, existe algo ainda menos confiável do que as matérias que recheiam nossos jornais: seus títulos, cada vez mais delirantes e insensatos. Pois, acreditem, o Valor Econômico, em 14 de janeiro, alcançou um novo patamar de delírio, ao estampar: ‘Governo deve buscar consenso antes de regulamentar mídia, diz Bernardo’ (disponível aqui). Ao ler as degravações das palavras de Bernardo, que vem a ser o ministro das Comunicações, o que encontrei de mais próximo a essa suposta defesa do consenso foi uma breve menção à busca por uma proposta ‘forte e sem divisões’.

Ora, caros colegas do Valor Econômico, daí ao consenso há muitas águas a rolar, concordam? Existe, neste mundo, uma longa hierarquia, que vai do mais profundo dissenso ao quase absoluto consenso – sim, ‘quase’ é o máximo, porque há quem discorde até da inevitabilidade da morte. E, ao posicionarmos a regulação da mídia nessa hierarquia, é nas proximidades do pólo do dissenso que ela será colocada.

A manchete do Valor Econômico não é informação. Não é sequer versão. É torcida para que o governo busque o consenso onde não há consenso, em um processo sem fim que vai terminar onde começou – ou seja, no nada. E não me refiro especificamente à regulação das comunicações, e sim, genericamente, à arte de governar. Essa arte é feita de opções que beneficiam alguns e prejudicam outros. Ou prejudicam alguns, beneficiam outros. É sempre um jogo complexo, em que as possibilidades de escolha são infinitas – o que economistas, acho que foram eles, batizaram muito chiquemente de trade-off.

O desejo do impossível

Mas na regulação da mídia ao menos dois infinitos seriam necessários para abarcar todos os trade-offs possíveis. Citemos apenas os players outra palavra rebuscada da Economia – envolvidos nessa luta: radiodifusores comerciais, um grupo muito menos coeso do que imaginamos; radiodifusores educativos e comunitários (os verdadeiros e os falsos, obviamente em conflito interno contínuo); empresas de telecomunicações, incluindo a TV a cabo que, curioso, é legalmente telecomunicação, e não televisão; outras TVs por assinatura que, por não estarem no cabo, não mereceram uma lei própria; o restante da mídia que não é nem TV a cabo, nem por assinatura, nem radiodifusão, e pode ser classificada em tradicional ou moderninha. Produtores de conteúdo. Políticos, que não podem ser diretores nem gerentes de empresas de radiodifusão, mas podem ser donos de todos os microfones. Produtores de equipamentos de telecomunicações ‘ou’ de radiodifusão, que na convergência nossa de cada dia trocam cada vez mais o ‘ou’ pelo ‘e’.

E claro, Vossa Excelência, o Público, que não é exatamente um player, mas é o magnânimo do processo, já que é dele que vem a audiência e a leitura que sustentam toda essa elaborada cadeia de valor da mídia.

Não bastasse a infinidade de players, nunca é demais lembrar que não estamos debatendo a regulação do cultivo de berinjelas. Estamos, sim, a discutir o estabelecimento de novas regras para o mercado de ideias, para os canais pelos quais a maior parte da informação política relevante chega aos cidadãos. É um pilar fundamental da democracia – o fluxo de informações – que está prestes a receber uma nova proposta de regulamentação.

E esperar que possa existir consenso sobre a regulação do mercado de ideias é, na simplória opinião deste articulista, não apenas despolitizar o debate, mas buscar o impossível. Pensando bem, talvez seja justamente esse o desejo não apenas do Valor Econômico, mas também da maior parte da mídia comercial em relação a uma nova regulamentação para as comunicações: que ela seja consensualmente impossível.

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Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e consultor legislativo da Câmara dos Deputados; editor do blog Museu da Propaganda